segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Quatro ou cinco elementos

 

de Empédocles à Freud via China


Na medicina tradicional chinesa, a teoria dos cinco elementos (五行, wŭ xíng), afirma que o fogo (), a água (), a madeira (), o metal () e a terra (), são os elementos básicos que formam o mundo material. Observe-se que com exceção da “madeira” essa concepção de elementos componentes está presente na antiga Grécia, tal como veremos, e na antiga Índia, sobre a qual comentaremos em outra oportunidade. A questão abordada no presente texto é a discutir a possibilidade de entender e comparar esta(s) distintas concepção(ões), aparentemente semelhantes, superando as barreiras da diferença entre linguagem, etnia e história. 

Segundo a tradição chinesa, compilada no “Livro dos 4 Institutos” existiria uma interação e controle recíproco entre esses elementos o que determinaria seu estado de constante movimento e mudança. Nessa teoria que estabelece um conjunto de matrizes, todas as coisas podem ser classificadas de acordo, ou melhor, em analogia, com estes elementos ou relações entre eles.

De acordo com Ronan, historiador da ciência da Universidade de Cambridge, a teoria dos cinco elementos foi estabelecida e sistematizada pelo naturalista Tsou Yen (Zou Yan) entre 350 e 270 a.C. Ele era o mais destacado membro da Academia Chin Hsia (Zhi-Xia) do príncipe Hsuan (Xuan), e por vezes chamado "fundador do pensamento científico chinês".

A medicina tradicional chinesa pode e deve ser considerada como um complexo sistema etnomédico com milhares de anos de experiências práticas, com uma descrição narrativa própria (a exemplo do "Livro do Imperador Amarelo") organizada em escolas com relações mestre - discípulo instituídas formalmente. Observe-se também como propôs o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), que o conhecimento mítico/empírico diverge das teorias científicas ocidentais por privilegiar a analogia em vez da identificação de contradições como na lógica formal, privilegiando os sentimentos e intuições enquanto a ciência fundamenta-se na senso-percepção (as propriedades organolépticas da matéria).

As explicações mítico religiosas por sua vez, identificadas nas cosmogonias míticas e sistemas de crenças religiosas, além da pretensão de explicar as origens do universo, classificar plantas e animais, realizar complexas obras engenharia, agricultura, também se organizam como sistemas de intervenção, cura, ou prevenção de doenças.  

Como bem assinala Souza Martins e Zafarini Neto a medicina tradicional chinesa considera o princípio da vida dinâmico. Tudo o que existe no universo está em constante transformação. O ser humano também obedece à mesma lógica. Existe adaptabilidade do indivíduo ao meio, ao seu psiquismo e ao seu estilo de vida. No Ling Shu (靈樞) (a segunda parte do “Livro do Imperador Amarelo” (黃帝) transcrito da tradução oral entre 200 aC. e 200) se lê: "As cem doenças, na origem, decorrem necessariamente da secura ou da umidade, do frio ou do calor, dos "ventos" ou da chuva, do yin ou do yang (陰陽), da alegria ou da cólera, das bebidas e da alimentação, ou das moradias (insalubres)".

Grécia - China

A história grega iniciou-se oficialmente com o período homérico, por volta de 1100 a.C. e estendeu-se até a transformação da Grécia em protetorado romano, em 146 a.C. É notável a coincidência do desenvolvimento da teoria dos cinco elementos na China com o “período helenístico” (338-136 a.C.) ou de difusão da cultura grega pelo Oriente após a ser conquistada pela Macedônia.

Ainda sem querer buscar rotas demográficas ou equacionar possíveis fontes históricas e/ou diferenças etno-linguísticas, interessa-nos explorar a possível aplicação desta forma de conhecimento mítico religiosa à interpretação da fisiologia normal ou patológica do corpo humano, com as intervenções da fitoterapia e acupuntura, os dois expoente principais da medicina tradicional chinesa. Observe-se que ainda hoje os praticantes da acupuntura e medicina tradicional chinesa utilizam a teoria dos cinco elementos (五行 wŭ xíng).

Sem querer também entrar no mérito do que é ou não é o conhecimento científico e constatando as possibilidades práticas de aplicação dessa analogia enquanto uma ferramenta conceitual, é que trago esta recuperação do entendimento e aplicação dessa teoria chinesa, equivalente à do mundo grego feita por Sigmund Freud (1856 -1939), em 1937.      

Segundo ele ...”Empédocles de Acragas (Agrigento, Sicília), nascido por volta de 495 a.C., é uma das maiores e mais notáveis figuras da história da civilização grega. As atividades de sua personalidade multifacetada seguiram as mais variadas direções. Ele foi investigador e pensador, profeta e mágico, político, filantropo e médico com conhecimentos de ciências naturais. Diz-se que libertou a cidade de Selinunte da malária e seus contemporâneos o reverenciavam como a um deus. Sua mente parece ter unido os mais agudos contrastes. Era exato e sóbrio em suas pesquisas físicas e fisiológicas; contudo, não se retraiu ante as obscuridades do misticismo e construiu especulações cósmicas de audácia espantosamente imaginativa”... 

Destaca ainda que a teoria de Empédocles que merece especialmente interesse da teoria psicanalítica por sua semelhança à teoria dos instintos que vem sendo desenvolvida e testada através da metodologia clínica, não como uma especulação mítica “uma fantasia cósmica” mas por sua possível validade biológica. 

Melhor que reescrever, as palavras de Freud com o inevitável plágio autoral de suas brilhantes observações, é transcrever os parágrafos onde comenta a semelhança da teoria psicanalítica com os enunciados de Empédocles, que segundo ele foi um dos maiores pensadores da antiga Grécia, considerando ainda que a teoria psicanalítica o tem como influência por suas leituras nos primeiros anos de pesquisa, (um efeito da criptoamnésia). 

Empédocles, segundo Capelle (apud Freud, 1937), é comparável ao Dr. Fausto, ‘a quem muitos segredos foram revelados’. Nascido, como foi, numa época em que o reino da ciência ainda não estava dividido em tantas províncias, algumas de suas teorias permaneceram por séculos, o que se deve à sua aplicabilidade, inevitavelmente aplicadas ao mundo físico (coisas) e espiritual (mental) explicando sempre pela mistura dos quatros elementos, a terra  (γῆ gê), o ar (ἀήρ aḗr), o fogo (πῦρ pŷr) e a água (ὕδωρ hýdōr), gerando os humores corporais (khymós, em grego), a saber: o sangue, a fleuma, a bile amarela e a bile negra, e emoções ou afetos, a saber: a ira relacionada ao ar e ao sangue (quente e úmido); a tristeza relacionada ao frio, a água fria e úmida (fleugma/pituíta); a cólera equivalente ao fogo (quente e seco) e a melancolia (melancholia) termo até hoje utilizado do grego Melan (Negro) e Cholis (Bílis). 

Essa teoria sobreviveu praticamente até o século XX, no mínimo enquanto metáfora, assim como fez Ivan Pavlov (1849-1936) ao relacionar os tipos de personalidade ou temperamento aos tipos de sistema nervoso classificados a partir dos processos de excitação e inibição, a saber os tipos fracos a quanto a excitação – os melancólicos e quanto a inibição – os coléricos, ambos considerados desequilibrados face ao predomínio de um dos processos (inibição ou excitação). Os tipos considerados equilibrados quanto à reversibilidade dos processos de excitação e inibição seriam os sanguíneos e fleumáticos, sendo a mobilidade típica dos sanguíneos enquanto nos fleumáticos, mais inerte. 

Nas palavras de Freud: 

Empédocles sustentava que toda a natureza era animada, e acreditava na transmigração das almas. Mas também incluiu no corpo teórico do conhecimento ideias modernas, como a evolução gradual das criaturas vivas, a sobrevivência dos mais aptos e o reconhecimento do papel desempenhado pelo acaso (τυχαίος / tychaíos) nessa evolução.

Mas a teoria de Empédocles que merece especialmente nosso interesse é uma que se aproxima tanto da teoria psicanalítica dos instintos, que ficaríamos tentados a sustentar que as duas são idênticas, não fosse pela diferença de a teoria do filósofo grego ser uma fantasia cósmica, ao passo que a nossa se contenta em reivindicar validade biológica. Ao mesmo tempo, o ato de Empédocles atribuir ao universo a mesma natureza animada que aos organismos individuais despoja essa diferença de grande parte de sua importância. 

O filósofo ensinou que dois princípios dirigem os eventos na vida do universo e na vida da mente, e que esses princípios estão perenemente em guerra um com o outro. Chamou-os de amor (philia - Φιλιά) e discórdia (neikos - νεικος). Desses dois princípios - que ele concebeu como sendo, no fundo, ‘forças naturais a operar como instintos, e de maneira alguma inteligências com um intuito consciente’ -, um deles se esforça por aglomerar as partículas primevas dos quatro elementos numa só unidade, ao passo que o outro, ao contrário, procura desfazer todas essas fusões e separar umas das outras as partículas primevas dos elementos. 

Empédocles imaginou o processo do universo como uma alternação contínua e incessante de períodos, nos quais uma ou outra das duas forças fundamentais leva a melhor, de maneira que em determinada ocasião o amor e noutra a discórdia realizam completamente seu intuito e dominam o universo, após o que o outro lado, vencido, se afirma e, por sua voz, derrota seu parceiro. 

Os dois princípios fundamentais de Empédocles - (Philotes Φιλότης e Neikos Νεῖκος) - são, tanto em nome quanto em função, os mesmos que nossos dois instintos primevos, Eros e Destrutividade, dos quais o primeiro se esforça por combinar o que existe em unidades cada vez maiores, ao passo que o segundo se esforça por dissolver essas combinações e destruir as estruturas a que elas deram origem. Não ficaremos surpresos, contudo, em descobrir que, em seu ressurgimento após dois milênios e meio, essa teoria se alterou em algumas de suas características. À parte a restrição ao campo biofísico que se nos impõe, não mais temos como substâncias básicas os quatro elementos de Empédocles: o que é vivo foi nitidamente diferenciado do que é inanimado, e não mais pensamos em mistura e separação de partículas de substância, mas na solda e na defusão/ disjunção dos componentes instintuais. 

Ademais, fornecemos um certo tipo de fundamento ao princípio de ‘discórdia’, fazendo nosso instinto de destruição remontar ao instinto de morte, ao impulso que tem o que é vivo a retornar a um estado inanimado. Isso não se destina a negar que um instinto análogo já existiu anteriormente, nem, é natural, a asseverar que um instinto desse tipo só passou a existir com o surgimento da vida. E ninguém pode prever sob que disfarce o núcleo de verdade contidana teoria de Empédocles se apresentará à compreensão posteriorSigmund Freud (1856 -1939), 1937

Segundo seu editor James Strachey (1887-1967) esse artigo de Freud (1937) explora as questões eficácia terapêutica da psicanálise, suas limitações e dificuldades em questões relativas à alta ou término da análise e porque não dize-lo as questões metodológicas, onde recorre mais uma vez aos recursos da antropologia para referendar achados da metodologia clínica.

Nesse caso específico desse texto, retoma as questões da dualidade e energia psíquica, compreendidas em seus aspectos quantitativos (análogos aos princípios físicos da entropia/ neguentropia) e qualitativos simbólicos que lhe valeram a acusação de retomar os valores judaico cristãos de Bem e Mal como científicos.    

Segundo ele...no decurso do desenvolvimento do homem de um estado primitivo para um civilizado, sua agressividade experimenta um grau bastante considerável de internalização ou volta para o interior; se assim for, seus conflitos internos certamente seriam o equivalente apropriado para as lutas internas que então cessaram. Estou bem cônscio de que a teoria dualista, segundo a qual um instinto de morte ou de destruição ou agressão reivindica iguais direitos como sócio de Eros, tal como este se manifesta na libido, encontrou pouca simpatia e na realidade não foi aceita, mesmo entre psicanalistas. Isso me deixou ainda mais satisfeito quando, não muito tempo atrás, me deparei com essa teoria de minha autoria nos escritos de um dos maiores pensadores da antiga Grécia”. Sigmund Freud (1856 -1939), 1937

Observe-se também que esta interpretação dos princípio dualísticos da medicina grega também são comparáveis aos conceitos Yin e Yang (陰陽) presentes no mito de criação da terra e humanidade de um grade número de etnias da China antiga, contudo por ora por questões de tempo e espaço nos limitaremos, por ora, a este esboço de comparação da teoria dos cinco ou quatro elementos, mas para finalizar lhes deixo esse fragmento do texto de Empédocles, possivelmente componente da gênese, como ele mesmo supôs, da teoria freudiana dos instintos também conhecida como relacionados à Eros e Tanatos.

...”duplas (coisas) direi: pois ora um foi crescido a ser só de muitos, ora de novo, partiu-se a ser muitos de um só. Dupla é a gênese das (coisas) mortais, dupla a desistência. Pois uma a convergência de todos engendra e destrói, e a outra, de novo (as coisas) partindo-se, cresce e dissipa. E estas (coisas) mudando constantemente jamais cessam, ora por Amizade convertidas em um todas elas, ora de novo divergidas em cada por ódio de Neikos. Assim, por onde um de muitos aprenderam a formar-se, e de novo partido o múltiplos se tornaram, por ai é que nascem e não lhes é estável a vida; mas por onde mudando constantemente jamais cessam, por aí é que sempre são imóveis segundo o ciclo”. ... Empédocles Ἐμπεδοκλῆς (495 a.C. - 430 a.C.), Fragmento 17

Referências

BRASIL ESCOLA. Grécia Antiga. https://brasilescola.uol.com.br/historiag/grecia-antiga.htm Acesso em outubro de 2021

CHINA. Livro dos 4 Institutos – Escola de Medicina Tradicional Chinesa de Beijing; Escola de Medicina Tradicional Chinesa de Shanghai; Escola de Medicina Tradicional Chinesa de Nanjig; Academia de Medicina Tradicional Chinesa. Fundamentos essenciais da acupuntura chinesa. SP, Ed. Ícone, 1995

CABRAL, Izabela Silva. As noções de amor (philia) e discórdia (neikos) nos fragmentos de Empédocles  (Relatório Final) Universidade Federal do Amazonas

Instituto de Ciências Humanas e Letras Programa Interinstitucional de bolsas de iniciação científica Orientadora: Profa.Dra. Maria do Socorro da Silva Jatobá, Manaus, 2010 http://riu.ufam.edu.br/handle/prefix/1826

FREUD, S. – Análise terminável e interminável (1937) Obras Completas de Psicanálise - volume XXIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.

LEVI-STRAUSS, C. O Pensamento Selvagem São Paulo, Companhia Ed Nacional, 1976

PAVLOV, Ivan P. Reflexos condicionados e inibições. RJ: Zahar, 1972

REBOLLO, Regina Andrés. O legado hipocrático e sua fortuna no período greco-romano: de Cós a Galeno. scientiæ zudia, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 45-82, 2006 Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1678-31662006000100003>. Epub 11 Maio 2010. ISSN 2316-8994. https://www.scielo.br/j/ss/a/V5trSkVBrfFGRMWq7QLRKpb/abstract/?lang=pt

RODRIGUES, Claudia. Vida e Morte é um ciclo - Freud e Empédocles de Acragas 2017 https://caminhosdapsiq.blogspot.com/2017/06/vida-e-morte-e-um-ciclo-freud-e.html acesso 19 de junho de 2021

RONAN, Colin A. História Ilustrada da Ciência da Universidade de Cambridge (4vol.) vol 2 - Oriente, Roma Idade Média RJ, Zahar Ed, 1987

SOUZA MARTINS, Ednéia Iara;  ZAFARINI NETO, Vicente. A histeria de Katharina de Freud tratada com acupuntura. SP: Roca, 2010

WIKIPEDIA. Wu Xing ‎ CostaPPPR (14 de setembro de 2021) https://pt.wikipedia.org/wiki/Wu_Xing 


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Ilustração: Greek Philosophy: matter consists of four "elements" earth, air, water, & fire "elements" combine to form matter "elements" are unchangeable upon death matter is converted back into basic "elements" http://faculty.collin.edu/ Greek Philosophy

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VER TAMBÉM O movimento das cinco estações, 2011 http://etnomedicina.blogspot.com/2011/03/o-movimento-das-cinco-estacoes.html Aforismos antigos, provérbios e conselhos para manutenção da saúde na tradição e medicina semítica. 2014 http://medicinacomportamental.blogspot.com/2014/02/aforismos-antigos-proverbios-e.html Aforismos antigos, provérbios e conselhos para controle das emoções e manutenção da saúde nas tradições das medicinas chinesa, grega e semítica. 2015 http://etnomedicina.blogspot.com/2015/05/aforismos-antigos-proverbios-e.html Aforismos antigos, provérbios e conselhos para manutenção da saúde na tradição e medicina hipocrática. Abril de 2015 http://medicinacomportamental.blogspot.com/2015/04/aforismos-antigos-proverbios-e.html Resenha: A Histeria de Katharina de Freud Tratada com Acupuntura. Fevereiro de 2017 http://etnomedicina.blogspot.com/2017/02/resenha-histeria-de-katharina-de-freud.html



Um comentário:

Paulo Pedro disse...

Observe-se que em data posterior à publicações/ ensinos de Empédocles (495 a.C. - 430 a.C.), Hipócrates (460 a.C. - 370 a.C) em seus escrito já relacionou os elementos e humores à emoções doenças e doenças mentais, inclusive é uma questão central abordada na minha tese "o mar de dentro" a descoberta e reconhecimento das funções do cérebro (o mar de medula) na tradição médica chinesa em paralelo a esse mesmo reconhecimento na medicina grega, atribuído ao grego Alcmaeon da escola Pitagórica de Croton em torno de 500 aC, que discorreu sobre as funções sensitivas deste.
Lê-se no texto hipocrático "Da doença sagrada" ...A corrupção do cérebro é devida ao fleuma e à bile. Conhecerás as duas causas desta maneira: os que enlouquecem devido ao fleuma são pacíficos e não gritam, nem bramem. Mas os que enlouquecem devido à bile costumam berrar, e tornam se furiosos e inquietos, sempre fazendo algo inoportuno. Se enlouquecem continuamente, essas são suas motivações; mas, se os terrores e medos se lhes afiguram, isso se deve ao deslocamento do cérebro, que se desloca quando aquecido, e ele se aquece devido à bile, quando se projeta sobre o cérebro através das veias sangüíneas procedentes do corpo. E um medo se mantém até que novamente (a bile) se retire para as veias e do corpo; depois cessa.
O indivíduo se esquenta quando o sangue abundante chega ao cérebro e ferve; depois, segue abundantemente, através das veias mencionadas, quando então o homem tem um sonho apavorante e mantém-se amedrontado. De sorte que, ao acordar, o rosto põe-se mais ardente e os olhos se envermelhecem, quando ele tem medo, e a inteligência concebe realizar algo ruim, o mesmo lhe ocorrerá no sono. Mas, quando o indivíduo desperta e toma consciência, e o sangue novamente se distribui para as veias mencionadas, isso cessa.
Os olhos, os ouvidos, a língua, as mãos, os pés praticam coisas tais quais o cérebro as percebe; pois a todo o corpo se aplica a consciência na medida em que ele participa do ar. Mas o cérebro é o transmissor da compreensão.
Por isso, afirmo que o cérebro é o interpretador da inteligência. ...Alguns dizem que temos consciência através do coração, e que essa é a parte que se aflige e se preocupa. Mas não é assim. O coração retrai-se assim como os diafragmas e seguramente devido às mesmas causas; pois estendem-se a ele as veias provenientes de todo o corpo, encerrando-as de modo a sentir se algum esforço ou alguma tensão ocorre no homem. De fato, é forçoso que o corpo afligido estremeça e se tencione, e o mesmo ocorra quando muito agradado, porque o coração e os diafragmas sentem-no mais. Certamente, nenhum dos dois participa da consciência, mas é o cérebro que é a causa de todas essas coisas.
Como (o cérebro) é o primeiro dentre aquilo que há no corpo a sentir a consciência proveniente do ar, assim também, se alguma mudança mais forte ocorrer no ar devida às estações, e se o próprio ar tornar-se diferente dele mesmo, o cérebro é o primeiro a senti lo. Por isso afirmo que recaem sobre ele (isto é, sobre o cérebro) as mais agudas enfermidades, maiores, mais mortais e mais difíceis de serem reconhecidas pelos mais inexperientes.

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CAIRUS, HF. Da doença sagrada. In: CAIRUS, HF., and RIBEIRO JR., WA. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. RJ: FIOCRUZ, 2005. Available from SciELO Books