quinta-feira, 4 de novembro de 2021

A energia psíquica, em um ponto de vista quase chinês.

 

aspectos qualitativos e quantitativos da libido (energia)

Esse texto parte do princípio de que “tudo que a cultura possui se expressa através da língua; e esta é em si mesma um produto cultural”, sem resolver esse paradoxo analisamos a concepção de Chi – energia (?) enquanto elemento fundamental do sistema etnomédico chinês, que explica e permite intervenções sobre diversas condições psíquicas e neurofisiológicas. É um texto que faz parte de um conjunto de ensaios da tese ou proposição de que a acupuntura chinesa, engendra em si, uma teoria que explica o que compreendemos como o órgão cérebro, para os chineses “mar de medula”, e possibilita a intervenção em diversas patologias e manifestações clínicas do sistema nervoso tais como dor, depressão e outras doenças mentais, doenças psicossomáticas e neurológicas.

Observe-se, como ressalta Jung, que não se trata de uma comparação de conceitos, parafraseando Lovejoy, em “A concept of primitive philosophy” [um conceito de filosofia primitiva], citado no seu livro “A energia psíquica”: o que entendemos por “conceito” - uma idéia nascida naturalmente de nossa própria mentalidade – é para o “primitivo” um fenômeno psíquico, que é percebido em íntima ligação com o objeto, não podendo ser considerados ideias abstratas nem mesmo conceitos concretos simples, mas tão-somente representações. Não havendo, portanto, uma idéia abstrata entre os primitivos, nem mesmo conceitos concretos simples, mas tão-somente representações.

Segundo os citados autores na linguagem dita “primitiva” só se indica o fato da relação e da experiência que ela provoca, o que não quer dizer entretanto que nesse pensamento em estado “selvagem” não há uma elaboração abstrata, enquanto faculdade mental, e/ou um reflexão sobre suas próprias crenças. Para Levi-Strauss, o criador da antropologia estrutural, teoria onde o estudo da linguagem é uma fonte privilegiada para conhecimento de uma cultura, os textos escritos ou conjuntos de narrativas, elaborados por cada etnia, corresponderia a um "documento bruto” o que segundo ele equivale a uma etnografia, elaborada por representantes da própria etnia. No caso do sistema etnomédico chinês contamos principalmente com “o livro do Imperador Amarelo”, extraído e compilado das tradições orais na dinastia Han (200 a.C. a 200 de nossa era). 

Antes de nos determos na concepção chinesa sobre a energia Chi , sobretudo sobre sua forma de essência ancestral ou pré natal, relacionada ao meridiano do rim e ao cérebro, como veremos, vale destacar a, no mínimo intrigante, coincidência com o conceito de libido. Segundo o dicionário de psicanálise de Roudinesco: Libido é um termo latino (vontade, desejo), inicialmente utilizado pelos fundadores da sexologia para designar uma energia própria do instinto sexual, retomado por Sigmund Freud numa acepção inteiramente distinta, inclusive da a antiga terminologia filosófica, baseada no Eros (amor) platônico, da qual, ainda segundo Roudinesco,  foram conservados apenas um adjetivo — erógeno —, para designar uma zona do corpo ou uma atividade ligada à excitação sexual.

Coube a C.G. Jung a proposição do conceito de energia, embora também utilize o termo "libido", segundo ele apesar de não ser ideal, sob certos aspectos, mas por razões de justiça histórica à proposição de Freud, com seu ponto de partida que era o da sexualidade e "instinto" ("instinto do eu") e "energia psíquica", uma força instintiva que não deve ser confundida como um retorno a uma espécie concepção vitalista. Segundo Jung e também Freud, lidamos com fenômenos físicos, que podem ser considerados sob dois pontos de vista distintos, a saber: do ponto de vista mecanicista e do ponto de vista energético, a energia psíquica pode ser compreendida no seu aspecto quantitativo como qualitativo.

Para Jung, tal como explica na introdução do seu livro “A energia psíquica” a concepção mecanicista é meramente causal, e compreende o fenômeno como sendo o efeito resultante de uma causa, no sentido de que as substâncias imutáveis alteram as relações de umas para com as outras segundo determinadas leis fixas e a consideração energética é essencialmente de caráter finalista, e entende os fenômenos, partindo do efeito para a causa.

Na concepção freudiana, tal como enunciado no seu projeto de uma psicologia para neurologistas tais dimensões corresponderiam aos aspectos quantitativos (Q - imediatamente mensuráveis em termos de carga e descarga, elétrica segundo Pribran) e qualitativos correspondente nossa psique e transformações simbólicas da libido.

O esquema gráfico acima apresentado resume a concepção freudiana das relações entre a energia psíquica e os processos elétricos e neuroquímicos cerebrais inter-relacionados, como se fosse o que modernamente compreendemos como um sistema operacional (software) ou interface amigável para controle do processos elétricos da máquina (hardware). Freud escolheu a metáfora de “aparelho psíquico” enquanto analogia aos telescópios e microscópios, utilizados para examinar e compreender fenômenos de outra dimensão, micro ou macro cósmica, uma analogia, nesse caso, sobre a relação da psique com o sistema nervoso e demandas orgânico-corporais.

As questões sobre pseudociência e/ou a cientificidade da psicanálise, sem dúvida decorrem das limitações da metodologia experimental para aplicação nas suas principais hipóteses. Por questões, sobretudo éticas, é praticamente impossível estabelecer uma pesquisa com a metodologia de caso – controle e ou duplo cego, muito menos desenhos experimentais com variáveis dependentes e intervenientes.

Para Turato pode deve-se utilizar paralelamente, além dos recursos dos testes e estatística já consolidados pela psicologia clínica, a metodologia qualitativa das ciência humanas como recurso a confirmação independente dos achados clínicos, estimulando o debate substantivo sobre as evidências de notórios pontos de vista. Retomando, de certo modo a proposição do próprio Freud de recorrer à antropologia, à arte (ou estética) e à teoria literária e linguística como fundamentação. Um recurso também utilizado por Jacques Lacan ao aproximar a psicanálise da antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss e linguística de Ferdinand Saussure.

Antropologia médica

Interessante observarmos que a acupuntura e a medicina tradicional chinesa (MTC) no ocidente e também em alguns momentos (e setores) na própria China já sofreu a pecha de pseudociência. Tal como escrevi na wikipédia, uma das grandes disseminadoras da identificação dessa prática como uma forma de pseudociência, esta proposição provém do desenvolvimento da medicina baseada em evidências ao que se somou, no Brasil, o movimento jurídico-político conhecido como” ato médico”. Tal rotulação como dito na wikipédia, advém dos estudos intensificados a partir da década de 90 publicados pela Organização Cochrane e especialmente de estudos desenvolvidos pelo médico e pesquisador, especializado em combater as medicinas alternativas, Edzard Ernst, referendados por um grupo de pesquisadores ingleses, inclusive da tradicional (fundada em 1869) revista Nature.

Observe-se porém que em termos de história e metodologia científica a MTC e acupuntura seguiu um caminho inverso, incialmente descrita por religiosos (jesuítas) e viajantes e paulatinamente aproximando-se da metodologia clínica. Mais recentemente com recursos da antropologia, saúde pública e finalmente com diversas hipóteses e desenhos experimentais.

Para Laplantine, o autor de Antropologia da doença e saúde, a aplicação da antropologia à medicina, estuda a percepção e resposta de um grupo social à patologia; elabora e analisa modelos etiológicos e terapêuticos. Um modelo é: uma construção teórica, caráter operatório (hipótese) e também uma construção metacultural ou seja que visa fazer surgir e analisar as formas elementares da “concepção” da doença e da cura - sua estrutura seus invariantes tornando-o comparável a outros sistemas (Laplantine, 1991)

O trabalho de construir modelos operatórios, que não substituem a realidade empírica, ajuda a pensá-la e põe em evidência o que ela não diz. É curioso como alguns autores insistem na pesquisa da anatomia dos canais e pontos de acupuntura, ou medidas biofísicas do Chi, não que estas não sejam possíveis, mas ignorando completamente o fato de lidarmos com um modelo, metafórico, abstrato, um “documento etnográfico bruto” consolidado por uma tradição empírica ou milhares de anos de tentativas erro e acerto. 

Analisando os diversos sistemas terapêuticos com que convivemos no mundo atual, Laplantine identifica na Acupuntura um modelo etiológico do tipo Exógeno/Endógeno comparável à Endocrinologia, Neuropsiquiatria e um modelo terapêutico distinto da alopatia e homeopatia, classificado num grupo tipo Sedativo/ Excitativo comparável à medicina experimental / Fisiologia Médica (utilizou como exemplo a regulação de função no rim artificial) e proposições terapêuticas da imunologia, "Treinamento Autógeno" de Schultz e Bioenergética de W. Reich (Laplantine, 1991)

Segundo o médico e professor de acupuntura da Universidade de Granada (Es), José Luis Padilla Corral ao estudarmos a Medicina Tradicional Chinesa (MTC), a consideraremos, como ele, uma Medicina Tradicional Oriental (MTO), face a sua ampla difusão asiática com datação incerta (entre 5.000 e 2500 anos) e considerando que não é exatamente uma medicina. Na sua origem é uma tradição de costumes e conceitos referentes à relação do homem com seu universo. É praticamente um consenso que os conceitos médicos foram compilados pelo lendário “imperador Amarelo” Huang Di da dinastia Han (206 a.C. – 220 d.C) na obra hoje conhecida como Nei Jing (内經) - "O Livro do Imperador Amarelo". Essa obra é considerada um dos clássicos fundamentais da medicina tradicional chinesa. (Padilla Corral; Needham, Gwei-Djen; White, Ernst) 

Anotações sobre o Jīng, a essência

O ideograma Jing é um dos conceitos fundamentais para compreensão da acupuntura do ponto de vista energético ou finalístico, ou seja tenta-se entende-lo como causa de um fenômeno ou manifestações de demanda de tonificação ou sedação da energia Yin ou Yang. A tonificação e sedação, como se sabe, são procedimentos técnicos da acupuntura e/ou características de produtos farmacológicos, aplicados à reversão ou prevenção de condições clínicas ou doenças.

Utilizando-se os métodos de “diagnósticos” da MTC identificam-se síndromes de deficiência (xū ) e excesso, (shí ) de Chi (Qi) para as quais utiliza-se os recursos da tonificação e sedação para restaurar o estado de equilíbrio. Yin / Yang são os dois princípios básicos para classificar e intervir dos diversos fenômenos corporais, sejam fisiológicos ou patológicos na concepção ocidental. Observe-se que nessa perspectiva lidamos com um modelo (hidráulico) “quantitativo”. São comuns as metáforas que descrevem os canais ou meridianos como regatos, rios e mares. Contudo são mais complexos os “conceitos” e narrativas voltadas para descrever os aspectos “qualitativos” dessa energia    

Além do Nei Jing (内經) a “teoria” da acupuntura herdou do Taoísmo (Tao Te Ching, cap. 67) a concepção de três tesouros 三寶 (SānBǎo) que adaptados à prática “médica” são os nosso conhecidos Jing : a essência, a herança dos pais; o Qi : a vitalidade, energia, (parcimônia/ suficiência) e o Shen " espírito; alma, consciência (humildade/ contato com a divindade).  A natureza, o bem estar e a adaptação do indivíduo ou o processo saúde doença, depende da relação entre esses elementos.

Em algumas traduções a mente (psique) é descrita como JīngShén 精神. Observe-se como uma narrativa “médica” voltada para aplicações terapêuticas teve sua origem em um texto clássico chinês tradicionalmente creditado ao sábio Lao Tsé pelo menos 4 séculos antes da compilação do “Livro do Imperador Amarelo)

Na concepção “médico / terapêutica” da MTC o   Jing é o princípio essencial, a essência da vida. Constitui-se na substância pura fundamental, a base material com a qual é construída a estrutura física do corpo e montam suas diversas atividades funcionais. 

A Essência (Jīng) é formada por duas partes: a inicial (先天之 – Xian Tian Zhi Jing), pré-natal também chamada yuán chi (qì) e a posterior (后天之 – Hou Tian Zhi Jing), pós-natal ou zòng qì a essência congênita propriamente dita (energia cromossômica), também traduzida por essência adquirida.

O ideograma Jing está presente nas designações de esperma 精子Jīngzǐ ( Zi Filho) e 精液 Jīngyè - Sêmem) Yè Líquido). É como se fosse inevitável associar a energia psíquica ou bioenergia à libido e demandas de reprodução dos seres vivos.

Analisando o ideograma Tiān (t'ien / céu), princípio cósmico imaterial, quando associado ao Jīng – designa a energia ancestral que se conserva no meridiano dos rins ou campo de cinábrio inferior nas concepções da alquimia taoísta e/ou às regiões “anatômicas” dos campos de transformação da energia os 3 (san) jiao: shang Jiao (alto - suspender); zhong Jiao (meio) e  Xia Jiao (baixo inferior). Em muitos textos sobretudo posteriores ao Neijing, exclusivamente, Taoístas ou Budistas predomina a interpretação dessas joias ou tesouros como qualidades morais ou vitudes, tal como visto acima.    

O diagrama que aqui segue, mostra a relação ente o Shen (shén), o Jing e órgãos responsáveis pela assimilação e distribuição da energia Qi (Chi) do ar e alimentos, onde:  Tien (Tiān ) o princípio cósmico imaterial é equivalente ao Shen e ao Jing sem distinguir o inicial (先天之 – Xian Tian Zhi Jing) do posterior (后天之 – Hou Tian Zhi Jing) representando a energia ancestral que se conserva, como dito, no meridiano dos rins ou campo de cinábrio inferior nas concepções da alquimia taoísta. A relação entre esses dois princípios ou momentos é feita no que constitui o Chi - “a raiz do homem”.


O Chi (Qi) circula em um fluxo interno, transforma a essência do alento e a energia espiritual (shen). Atravessa os campos de transformação da energia dos alimentos e da respiração nos 3 (san) jiao conforme a Doutrina Médica Chinesa, segundo o Huangdi Neijing obedecendo as leis as leis do  Yin/Yang e dos 5 elementos.

Como referido a psique é à vezes descrita como JīngShén 精神. Numa concepção ampla a expressão Shen (às vezes traduzido por espírito e às vezes por sentimento) designa a manifestação exterior da vitalidade do corpo (a totalidade da psique) e em um sentido estrito representa a consciência que comanda o Coração e atividade mental.  Ao Jing corresponde o órgão, funções do rim que governa a medula e o cérebro (mar de medula). Na acupuntura e de certo modo no oriente, seria o que os indianos conhecem como "karma" e nós como determinação genética (de certo modo genoma). O Qi, na acupuntura assume muitas formas ou significados condizentes com a função que exerce em cada momento, circulando nos meridianos e/ou associado as funções nutritivas e defensivas: 正氣 (zhèng-qì / vital chi);  衛氣 (wèi-qì / chi defensivo); (jing qi / chi nutritivo)

O capítulo 1, do Su Wen, mostra claramente a importância do rim. (“Medula” ou “Emanação renal”) no crescimento, desenvolvimento, reprodução e envelhecimento e demarca cada período do ciclo vital em sete anos para mulher e oito para o homem. Observe-se que esta é um outro aspecto da energia compreendida na MTC como uma espécie de energia potencial e no ocidente como a programação genética (redução telomérica?) que explica o envelhecimento. Essa descrição pode ser resumida da seguinte forma:

- Infância (sete e oito anos); a emanação renal é abundante; a dentição muda e os cabelos se alongam; mudanças na pele e pelo; adolescência (14 e 16 anos); a emanação renal flui (ren mai) e floresce (chong mai); início da menstruação; início da emissão seminal; amadurecimento das funções sexuais e reprodutoras.

- 21 e 24 anos; a emanação renal está parada; desenvolvimento dos últimos dentes; no homem, os músculos são potentes e os ossos vigorosos;

- 28 e 32 anos; na mulher os músculos e ossos estão consolidados, os cabelos atingem seu maior tamanho e o corpo em pleno vigor; no homem os músculos estão salientes, as carnes viçosas e vigorosas.

35 e 40 anos: na mulher, o canal yang ming declina, o rosto começa a murchar e os cabelos a cair; no homem a respiração do rim enfraquece os cabelos os dentes começam a cair.

- 42 e 48 anos: na mulher, os três canais shou yang declinam, todo o rosto resseca-se e os cabelos começam a “esbranquiçar”; no homem, o yang na região superior está esgotado. O rosto se resseca e as têmporas ficam grisalhas.

- 49 e 56 anos: na mulher, o qi do Vaso Concepção declina, o qi do chong mai começa a enfraquecer e escassear, a energia sexual inicia a exaustão e a menstruação para, então seu corpo começa a envelhecer e ela não pode mais engravidar; no homem, a energia sexual começa a declinar, sêmen começa a escassear e os rins ficam fracos e todas as partes do corpo começam a envelhecer;

Aos 64 anos, no homem, os dentes e cabelos caem.

A energia psiquica

Quanto ao enigmático Shen

"O shen não pode ser escutado com o ouvido, o olho deve ser brilhante de percepção e o coração deve ser aberto e atento para que o espírito se revele subitamente através da própria consciência de cada um. Não se pode exprimir pela boca; só o coração sabe exprimir tudo quanto pode ser observado. Se presta muita atenção, pode-se ficar a saber subitamente, mas também pode-se perder de repente esse saber. Mas shen, o espírito, torna-se claro par o homem como se o vento tivesse varrido as nuvens. Por isso se fala dele como do espírito."  Nei Ching

Apesar da distinção entre mito e ciência feita pela antropologia estrutural, que identifica a ciência como construída a partir da observação e a mitologia pela introspeção (Levi Strauss - Pensamento Selvagem), nesse caso, não há discordância quanto a importância da observação. Na medicina tradicional chinesa descrita no Nei Ching, o livro do imperador amarelo, encontra-se esse interessante reforço à descrição de método para "observar-se" e conhecer a mente ou shèn o espírito que comanda o hsing / corpo ( xíng - forma) como pose ser constatado no parágrafo acima transcrito do Nei Ching, livro do imperador amarelo utilizado durante a dinastia Tang (唐朝), 618-906.

Alguns autores descrevem a mente como Xīn (sentimento) ou XīnShén 心神 (mente) talvez herdado ou contagiado pela concepção grega (e talvez universal) de ser o coração o órgão responsável pelos sentimentos e identificam o espírito Shén como o responsável pela percepção e consciência. Contudo a concepção de JīngShén 精神 nos remete a uma concepção mais ampla da totalidade da psique tal como compreendida por Sigmund Freud, integrando o “inconsciente” (id) à linguagem e às demandas instintivas das funções corporais. Em suas palavras...” o ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície.” (Freud, 1923). Por isso, é preciso apreendê-lo como uma projeção mental da superfície do corpo.

Nesse sistema etnomédico cujo referencial básico é o NeiChing ou livro do imperador amarelo o coração, fígado e rim têm maior importância; O Coração é o mestre dos cinco órgãos Zang e das cinco vísceras Fu; o fígado dirige a regulação dos sentimentos e os Rins encerram o Jing que é a base material e ancestral de tudo. As emoções e/ou os padrões de desarmonia também estão previstas, o que em linhas gerais pode ser descrito como:

- O Coração encerra o Shèn e governa a alegria

- O Pulmão encerra o Pò e governa a tristeza

- O Baço-pâncreas encerra o Yì e governa a reflexão

- O Fígado encerra o Hún e governa a raiva

- O Rim encerra o Zhì e governa o medo

Alguns autores como Zhang.e Chi, Martins Zafarini Neto enfatizam a possibilidade de interpretação das concepções da MTC à luz da psicanálise. O dois primeiros ressaltam que muito trabalho ainda precisa ser feito, na construção de um paradigma metodológico, para um diálogo mais amplo entre a MTC e a psicoterapia psicanalítica. Análoga possivelmente a uma espécie de “Acupuntura Falada” utilizando o poder da palavra como recurso de estimulação e inibição (Reinforcing and Reducing). A psicoterapia, segundo eles, em seu sentido restrito pode ser vista como a solidificação do qi defensivo wèi-qì , como uma categoria de apoio mais ampla, onde seu antagonismo e unificação coexistem em tensões dialéticas e dinâmicas próprias da psique.

Os autores Martins Zafarini Neto que também propõe uma aproximação /interpretação psicanalítica das MTC, como referido, destacam que no Nei Jing, a palavra shèn é utilizada com vários significados diferentes. Os dois principais que interessam ao tratamento das doenças mentais são: 1. Shen indicando a atividade do pensamento, consciência, autoidentidade, insight e memória, tal como Soulié de Morant, o interpreta; e 2. O Shèn que abrange o complexo de todos os cinco aspectos mentais e espirituais de um ser humano, isto é, a mente propriamente dita: o coração (shèn), a alma etérea (hun) o fígado, a alma corpórea (po) do pulmão, o intelecto (yi) do baço e a força de vontade (zhi) do rim.

É terrível que muitos detratores da acupuntura, supostamente baseados na comparação aos conceitos da anatomia e fisiologia experimental ocidental, continuem a tentar reduzir meridianos e energia aos componentes orgânicos (fígado, pulmão baço- pâncreas, rim etc.) e medidas físicas, classificando a MTC como uma pseudociência, (sabe Deus com quais intenções?) ignorando as contribuições da antropologia médica  que não só possibilitariam desenvolver um método de pesquisa eficiente, como  permitem uma compreensão mais exata dos procedimentos e intervenções da acupuntura e MTC enquanto uma pratica humana e biopsicossocial e, porque não dizer, espiritual?

Principais ideogramas incluídos no texto

Jing essência; Chi ou Qi / vitalidade, energia;   Shén espírito;

正氣 (zhèng-qì / vital chi);  衛氣 (wèi-qì / chi defensivo); (jing qi / chi nutritivo)

精子 (jīngzǐ /esperma);  Zi Filho;  精液 (Jīngyè - Sêmem) 陰道 (yindào /vagina)

精神 JīngShén / Psique;  xū / deficiência; shí / excesso.

Referências

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Ilustrações

Ideograma 陰道 (yīn dào) 陰 Yiīn: cloudy; overcast · dark · hidden; secret · negative · the Moon · shade; shadow · (philosophy) "female" principle; yin in yin-yang 道 Dào: Road, Way Propaganda lingerie -Lojas Renner Diagrama de espermatozoide / Sperm diagram https://pt.dreamstime.com/sperm-spermatozoide-vetor-de-fundo-image156375242

Diagrama do Aparelho Psíquico - Sigmund Freud (1923) sobre anotações do "Projeto de uma psicologia para neurologistas" Sigmund Freud (1950 [1895])

Diagrama da relação Jīng /Chi /Shén - Costa, Paulo Pedro P. R. O Mar de dentro Monografia especialização na Clínica Escola CLIMA orient. Jurecê J. Machado, 2001



segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Quatro ou cinco elementos

 

de Empédocles à Freud via China


Na medicina tradicional chinesa, a teoria dos cinco elementos (五行, wŭ xíng), afirma que o fogo (), a água (), a madeira (), o metal () e a terra (), são os elementos básicos que formam o mundo material. Observe-se que com exceção da “madeira” essa concepção de elementos componentes está presente na antiga Grécia, tal como veremos, e na antiga Índia, sobre a qual comentaremos em outra oportunidade. A questão abordada no presente texto é a discutir a possibilidade de entender e comparar esta(s) distintas concepção(ões), aparentemente semelhantes, superando as barreiras da diferença entre linguagem, etnia e história. 

Segundo a tradição chinesa, compilada no “Livro dos 4 Institutos” existiria uma interação e controle recíproco entre esses elementos o que determinaria seu estado de constante movimento e mudança. Nessa teoria que estabelece um conjunto de matrizes, todas as coisas podem ser classificadas de acordo, ou melhor, em analogia, com estes elementos ou relações entre eles.

De acordo com Ronan, historiador da ciência da Universidade de Cambridge, a teoria dos cinco elementos foi estabelecida e sistematizada pelo naturalista Tsou Yen (Zou Yan) entre 350 e 270 a.C. Ele era o mais destacado membro da Academia Chin Hsia (Zhi-Xia) do príncipe Hsuan (Xuan), e por vezes chamado "fundador do pensamento científico chinês".

A medicina tradicional chinesa pode e deve ser considerada como um complexo sistema etnomédico com milhares de anos de experiências práticas, com uma descrição narrativa própria (a exemplo do "Livro do Imperador Amarelo") organizada em escolas com relações mestre - discípulo instituídas formalmente. Observe-se também como propôs o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), que o conhecimento mítico/empírico diverge das teorias científicas ocidentais por privilegiar a analogia em vez da identificação de contradições como na lógica formal, privilegiando os sentimentos e intuições enquanto a ciência fundamenta-se na senso-percepção (as propriedades organolépticas da matéria).

As explicações mítico religiosas por sua vez, identificadas nas cosmogonias míticas e sistemas de crenças religiosas, além da pretensão de explicar as origens do universo, classificar plantas e animais, realizar complexas obras engenharia, agricultura, também se organizam como sistemas de intervenção, cura, ou prevenção de doenças.  

Como bem assinala Souza Martins e Zafarini Neto a medicina tradicional chinesa considera o princípio da vida dinâmico. Tudo o que existe no universo está em constante transformação. O ser humano também obedece à mesma lógica. Existe adaptabilidade do indivíduo ao meio, ao seu psiquismo e ao seu estilo de vida. No Ling Shu (靈樞) (a segunda parte do “Livro do Imperador Amarelo” (黃帝) transcrito da tradução oral entre 200 aC. e 200) se lê: "As cem doenças, na origem, decorrem necessariamente da secura ou da umidade, do frio ou do calor, dos "ventos" ou da chuva, do yin ou do yang (陰陽), da alegria ou da cólera, das bebidas e da alimentação, ou das moradias (insalubres)".

Grécia - China

A história grega iniciou-se oficialmente com o período homérico, por volta de 1100 a.C. e estendeu-se até a transformação da Grécia em protetorado romano, em 146 a.C. É notável a coincidência do desenvolvimento da teoria dos cinco elementos na China com o “período helenístico” (338-136 a.C.) ou de difusão da cultura grega pelo Oriente após a ser conquistada pela Macedônia.

Ainda sem querer buscar rotas demográficas ou equacionar possíveis fontes históricas e/ou diferenças etno-linguísticas, interessa-nos explorar a possível aplicação desta forma de conhecimento mítico religiosa à interpretação da fisiologia normal ou patológica do corpo humano, com as intervenções da fitoterapia e acupuntura, os dois expoente principais da medicina tradicional chinesa. Observe-se que ainda hoje os praticantes da acupuntura e medicina tradicional chinesa utilizam a teoria dos cinco elementos (五行 wŭ xíng).

Sem querer também entrar no mérito do que é ou não é o conhecimento científico e constatando as possibilidades práticas de aplicação dessa analogia enquanto uma ferramenta conceitual, é que trago esta recuperação do entendimento e aplicação dessa teoria chinesa, equivalente à do mundo grego feita por Sigmund Freud (1856 -1939), em 1937.      

Segundo ele ...”Empédocles de Acragas (Agrigento, Sicília), nascido por volta de 495 a.C., é uma das maiores e mais notáveis figuras da história da civilização grega. As atividades de sua personalidade multifacetada seguiram as mais variadas direções. Ele foi investigador e pensador, profeta e mágico, político, filantropo e médico com conhecimentos de ciências naturais. Diz-se que libertou a cidade de Selinunte da malária e seus contemporâneos o reverenciavam como a um deus. Sua mente parece ter unido os mais agudos contrastes. Era exato e sóbrio em suas pesquisas físicas e fisiológicas; contudo, não se retraiu ante as obscuridades do misticismo e construiu especulações cósmicas de audácia espantosamente imaginativa”... 

Destaca ainda que a teoria de Empédocles que merece especialmente interesse da teoria psicanalítica por sua semelhança à teoria dos instintos que vem sendo desenvolvida e testada através da metodologia clínica, não como uma especulação mítica “uma fantasia cósmica” mas por sua possível validade biológica. 

Melhor que reescrever, as palavras de Freud com o inevitável plágio autoral de suas brilhantes observações, é transcrever os parágrafos onde comenta a semelhança da teoria psicanalítica com os enunciados de Empédocles, que segundo ele foi um dos maiores pensadores da antiga Grécia, considerando ainda que a teoria psicanalítica o tem como influência por suas leituras nos primeiros anos de pesquisa, (um efeito da criptoamnésia). 

Empédocles, segundo Capelle (apud Freud, 1937), é comparável ao Dr. Fausto, ‘a quem muitos segredos foram revelados’. Nascido, como foi, numa época em que o reino da ciência ainda não estava dividido em tantas províncias, algumas de suas teorias permaneceram por séculos, o que se deve à sua aplicabilidade, inevitavelmente aplicadas ao mundo físico (coisas) e espiritual (mental) explicando sempre pela mistura dos quatros elementos, a terra  (γῆ gê), o ar (ἀήρ aḗr), o fogo (πῦρ pŷr) e a água (ὕδωρ hýdōr), gerando os humores corporais (khymós, em grego), a saber: o sangue, a fleuma, a bile amarela e a bile negra, e emoções ou afetos, a saber: a ira relacionada ao ar e ao sangue (quente e úmido); a tristeza relacionada ao frio, a água fria e úmida (fleugma/pituíta); a cólera equivalente ao fogo (quente e seco) e a melancolia (melancholia) termo até hoje utilizado do grego Melan (Negro) e Cholis (Bílis). 

Essa teoria sobreviveu praticamente até o século XX, no mínimo enquanto metáfora, assim como fez Ivan Pavlov (1849-1936) ao relacionar os tipos de personalidade ou temperamento aos tipos de sistema nervoso classificados a partir dos processos de excitação e inibição, a saber os tipos fracos a quanto a excitação – os melancólicos e quanto a inibição – os coléricos, ambos considerados desequilibrados face ao predomínio de um dos processos (inibição ou excitação). Os tipos considerados equilibrados quanto à reversibilidade dos processos de excitação e inibição seriam os sanguíneos e fleumáticos, sendo a mobilidade típica dos sanguíneos enquanto nos fleumáticos, mais inerte. 

Nas palavras de Freud: 

Empédocles sustentava que toda a natureza era animada, e acreditava na transmigração das almas. Mas também incluiu no corpo teórico do conhecimento ideias modernas, como a evolução gradual das criaturas vivas, a sobrevivência dos mais aptos e o reconhecimento do papel desempenhado pelo acaso (τυχαίος / tychaíos) nessa evolução.

Mas a teoria de Empédocles que merece especialmente nosso interesse é uma que se aproxima tanto da teoria psicanalítica dos instintos, que ficaríamos tentados a sustentar que as duas são idênticas, não fosse pela diferença de a teoria do filósofo grego ser uma fantasia cósmica, ao passo que a nossa se contenta em reivindicar validade biológica. Ao mesmo tempo, o ato de Empédocles atribuir ao universo a mesma natureza animada que aos organismos individuais despoja essa diferença de grande parte de sua importância. 

O filósofo ensinou que dois princípios dirigem os eventos na vida do universo e na vida da mente, e que esses princípios estão perenemente em guerra um com o outro. Chamou-os de amor (philia - Φιλιά) e discórdia (neikos - νεικος). Desses dois princípios - que ele concebeu como sendo, no fundo, ‘forças naturais a operar como instintos, e de maneira alguma inteligências com um intuito consciente’ -, um deles se esforça por aglomerar as partículas primevas dos quatro elementos numa só unidade, ao passo que o outro, ao contrário, procura desfazer todas essas fusões e separar umas das outras as partículas primevas dos elementos. 

Empédocles imaginou o processo do universo como uma alternação contínua e incessante de períodos, nos quais uma ou outra das duas forças fundamentais leva a melhor, de maneira que em determinada ocasião o amor e noutra a discórdia realizam completamente seu intuito e dominam o universo, após o que o outro lado, vencido, se afirma e, por sua voz, derrota seu parceiro. 

Os dois princípios fundamentais de Empédocles - (Philotes Φιλότης e Neikos Νεῖκος) - são, tanto em nome quanto em função, os mesmos que nossos dois instintos primevos, Eros e Destrutividade, dos quais o primeiro se esforça por combinar o que existe em unidades cada vez maiores, ao passo que o segundo se esforça por dissolver essas combinações e destruir as estruturas a que elas deram origem. Não ficaremos surpresos, contudo, em descobrir que, em seu ressurgimento após dois milênios e meio, essa teoria se alterou em algumas de suas características. À parte a restrição ao campo biofísico que se nos impõe, não mais temos como substâncias básicas os quatro elementos de Empédocles: o que é vivo foi nitidamente diferenciado do que é inanimado, e não mais pensamos em mistura e separação de partículas de substância, mas na solda e na defusão/ disjunção dos componentes instintuais. 

Ademais, fornecemos um certo tipo de fundamento ao princípio de ‘discórdia’, fazendo nosso instinto de destruição remontar ao instinto de morte, ao impulso que tem o que é vivo a retornar a um estado inanimado. Isso não se destina a negar que um instinto análogo já existiu anteriormente, nem, é natural, a asseverar que um instinto desse tipo só passou a existir com o surgimento da vida. E ninguém pode prever sob que disfarce o núcleo de verdade contidana teoria de Empédocles se apresentará à compreensão posteriorSigmund Freud (1856 -1939), 1937

Segundo seu editor James Strachey (1887-1967) esse artigo de Freud (1937) explora as questões eficácia terapêutica da psicanálise, suas limitações e dificuldades em questões relativas à alta ou término da análise e porque não dize-lo as questões metodológicas, onde recorre mais uma vez aos recursos da antropologia para referendar achados da metodologia clínica.

Nesse caso específico desse texto, retoma as questões da dualidade e energia psíquica, compreendidas em seus aspectos quantitativos (análogos aos princípios físicos da entropia/ neguentropia) e qualitativos simbólicos que lhe valeram a acusação de retomar os valores judaico cristãos de Bem e Mal como científicos.    

Segundo ele...no decurso do desenvolvimento do homem de um estado primitivo para um civilizado, sua agressividade experimenta um grau bastante considerável de internalização ou volta para o interior; se assim for, seus conflitos internos certamente seriam o equivalente apropriado para as lutas internas que então cessaram. Estou bem cônscio de que a teoria dualista, segundo a qual um instinto de morte ou de destruição ou agressão reivindica iguais direitos como sócio de Eros, tal como este se manifesta na libido, encontrou pouca simpatia e na realidade não foi aceita, mesmo entre psicanalistas. Isso me deixou ainda mais satisfeito quando, não muito tempo atrás, me deparei com essa teoria de minha autoria nos escritos de um dos maiores pensadores da antiga Grécia”. Sigmund Freud (1856 -1939), 1937

Observe-se também que esta interpretação dos princípio dualísticos da medicina grega também são comparáveis aos conceitos Yin e Yang (陰陽) presentes no mito de criação da terra e humanidade de um grade número de etnias da China antiga, contudo por ora por questões de tempo e espaço nos limitaremos, por ora, a este esboço de comparação da teoria dos cinco ou quatro elementos, mas para finalizar lhes deixo esse fragmento do texto de Empédocles, possivelmente componente da gênese, como ele mesmo supôs, da teoria freudiana dos instintos também conhecida como relacionados à Eros e Tanatos.

...”duplas (coisas) direi: pois ora um foi crescido a ser só de muitos, ora de novo, partiu-se a ser muitos de um só. Dupla é a gênese das (coisas) mortais, dupla a desistência. Pois uma a convergência de todos engendra e destrói, e a outra, de novo (as coisas) partindo-se, cresce e dissipa. E estas (coisas) mudando constantemente jamais cessam, ora por Amizade convertidas em um todas elas, ora de novo divergidas em cada por ódio de Neikos. Assim, por onde um de muitos aprenderam a formar-se, e de novo partido o múltiplos se tornaram, por ai é que nascem e não lhes é estável a vida; mas por onde mudando constantemente jamais cessam, por aí é que sempre são imóveis segundo o ciclo”. ... Empédocles Ἐμπεδοκλῆς (495 a.C. - 430 a.C.), Fragmento 17

Referências

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Ilustração: Greek Philosophy: matter consists of four "elements" earth, air, water, & fire "elements" combine to form matter "elements" are unchangeable upon death matter is converted back into basic "elements" http://faculty.collin.edu/ Greek Philosophy

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VER TAMBÉM O movimento das cinco estações, 2011 http://etnomedicina.blogspot.com/2011/03/o-movimento-das-cinco-estacoes.html Aforismos antigos, provérbios e conselhos para manutenção da saúde na tradição e medicina semítica. 2014 http://medicinacomportamental.blogspot.com/2014/02/aforismos-antigos-proverbios-e.html Aforismos antigos, provérbios e conselhos para controle das emoções e manutenção da saúde nas tradições das medicinas chinesa, grega e semítica. 2015 http://etnomedicina.blogspot.com/2015/05/aforismos-antigos-proverbios-e.html Aforismos antigos, provérbios e conselhos para manutenção da saúde na tradição e medicina hipocrática. Abril de 2015 http://medicinacomportamental.blogspot.com/2015/04/aforismos-antigos-proverbios-e.html Resenha: A Histeria de Katharina de Freud Tratada com Acupuntura. Fevereiro de 2017 http://etnomedicina.blogspot.com/2017/02/resenha-histeria-de-katharina-de-freud.html