domingo, 23 de setembro de 2018

Fígado, Raiva e Agressão na Medicina Tradicional Chinesa


É tentador buscar compreender as emoções em seu sentido mais amplo e universal, contudo numa perspectiva clínica da medicina psicossomática e mesmo para o entendimento correto (leia-se interpretação ocidental) da medicina tradicional chinesa alguns parâmetros deve ser considerados.

Colin A. Ronan em sua "História ilustrada da ciência da Universidade de Cambridge" assinala o período histórico de surgimento/consolidação de algumas das ideias básicas da ciência chinesa, como nos descreve, a concepção de Yin / Yang (陰陽) originou-se no princípio do século IV a.C. e quanto a teoria dos Cinco elementos Wu Xing (五行), ele atribui  sua sistematização e origem nos anos entre 370 e 250 a.C. por Tsou Yen (Zou Yan) o membro mais destacado da Academia Chi-Hsia (Zhi-Xia) do príncipe Hsuan (Xuan).

O reconhecimento da teoria dos "cinco elementos" ou "cinco movimentos" constitui-se como uma verdadeira revolução no conjunto de hipóteses, leis e teorias que formam a psicologia. Na concepção da tradição chinesa os sentimentos ou emoções organizam-se como um ciclo associado à atividade dos órgãos meridianos durante o dia e durante o ano. Tais emoções e sentimentos podem ser benéficos ou patógenos a depender da forma como associados aos cinco elementos da natureza (Vento; Calor; Umidade; Secura; Frio)

Observe-se, contudo que os ideogramas chineses que correspondem aos cinco sentimentos ou emoções poderiam ser melhor compreendidos, pelos ocidentais, analisando-se, numa perspectiva antropológica,e/ou  sua utilização na literatura chinesa clássica.

Para os ocidentais o ciclo neurofisiológico das emoções associado às estações do ano é em parte já reconhecido por especialistas em psicobiologia e estudo do comportamento animal. São considerados  matrizes ou modelos, replicados em seus diversos fatores em experimentos  que contribuíram para atual concepção da neurofisiologia das emoções.  Uma atenção especial é dada à agressão,  por sua associação ao crime, porque não à sociopatia sádica que começa a ser interpretada nesses modelos, e mesmo à guerra.   

Em psicologia as emoções vêm sendo estudadas desde sua origem como ciência.   Entre as primeiras proposições destacam-se as contribuições de William James (1842-1910) modificada posteriormente pelo fisiologista Carl Lange, nessa teoria, conhecida também como teoria da emoção de James-Lange,  imagina-se que as emoções ocorrem como resultado de reações fisiológicas aos eventos.

Na teoria proposta por  Walter Bradford Cannon (1871-1945), a emoção ocorre quando o tálamo envia sinais, ao mesmo tempo, para o sistema nervoso autônomo e para o córtex cerebral, o que produz simultaneamente a experiência da emoção e as alterações corporais.

Entre outras pode ser citada ainda  a teoria dos dois fatores de S. Schachter e J. Singer's (1962), segundo a qual a experiência da emoção depende da estimulação autônoma e da interpretação cognitiva dessa estimulação.

Outro destaque é a teoria psicanalítica, onde se utiliza o termo afeto (teoria dos afetos) para designar algumas das emoções estudadas por James e Cannon e Schachter com grandes contribuições  sobretudo à compreensão da ansiedade e tristeza (melancolia), especialmente a relação destas com as chamadas doenças psicossomáticas, como veremos, apesar de nos limitarmos, nesse texto, ao estudo da raiva e agressão.

Sem tanta pretensão com as da psicologia enquanto ciência, a maioria dos manuais de acupuntura traduzidos descrevem os seguintes sentimentos/emoções: (1) ira ou raiva ( nù); (2) alegria, felicidade ( xǐ ) também traduzido como surpresa susto; (3) ansiedade ( yōu) traduzido também como: preocupação – meditação – ficar pensativo ( - si); ter uma ideia fixa, obsessão; (4) tristeza traduzido também por: melancolia, sofrimento moral, mágoa ( bēi) e (5) medo ( kǒng).

Na concepção ocidental de medicina psicossomática de doença psicossomática a agressão e ou raiva pode estar associada à gastrite e à esofagite, à algumas formas de constipação ou prisão de ventre. Inclusive o termo “enfezado” sinônimo de irritado, zangado, na concepção popular e  em muitos dicionários "causar fezes a ou ser acometido de fezes;  contudo etimológicamente apenas associado  à irritação e não a fezes (do latim infensare, “ficar raivoso com”, “ser hostil.”). Se relacionarmos a raiva à modernas concepções dos mecanismos de fuga e luta e reação de stress além das ”clássicas” ulceras duodenais também está associado à distúrbios cardíacos, asma e outras doenças da emoção ansiosa ou depressiva nas suas fases de “alerta” e “exaustão” ou “quase –exaustão”.

Na concepção chinesa e teoria dos Cinco Elementos ou Movimentos a “raiva” está associada ao meridiano do fígado (Gan 肝經). Pela sua natureza ou função deste meridiano relaciona-se ao aumento do Qi (energia vital) necessários à reações de luta, o que elicia, tanto para ocidentais como orientais, o padrão reativo de ira: taquicardia, prontidão de músculos e articulações, o rosto e os olhos avermelhados, agitação. Os chineses aí identificam o chamado aumento fogo do fígado.

Entre as doenças associadas ao desequilíbrio das relações do fígado com  os meridianos do pulmão, baço estomago e intestino – descritos na teoria dos cinco elementos (五行, wŭ Xing) são conhecidas e tratadas empiricamente, lesões de cartilagem e unhas, afecções dos olhos e a capacidade de planejamento, projetos inspiração por afetar o hun – alma etérea (o fator cognitivo da experiência emocional ? ou a função do lobo – frontal ?) .

Uma síntese entre tais concepções e práticas decorrentes de seu emprego ainda está por ser realizada. Acreditamos que a correta interpretação dos elementos lingüísticos e culturais seja essencial. Não se deve esquecer, porém,  que tanto a concepção de doença como de cura em ambas as concepções devem ser consideradas simultaneamente (e não a descrição da doença para o ocidente e o tratamento oriental ou vice versa) e que assim como no ocidente a acupuntura e medicina chinesa é uma concepção que dialoga com resultados empíricos ou de experiência acumulada embora não se limite a tecer hipóteses com o que pode ser visto (observável) ou possua existência material, levando-se em conta a condição de espírito e não apenas a dimensão simbólica e de linguagem.

Referências

Ronan, Colin A. História Ilustrada da Ciência da Universidade de Cambridge. (4vol.) vol 2 - Oriente, Roma Idade Média. RJ, Zahar Ed, 1987

Weiten, W. Introdução à Psicologia: Temas e Variações. São Paulo: Pioneira Thomson, 2002

Reisenzein, R. (1983). The Schachter theory of emotion: Two decades later. Psychological Bulletin, 94(2), 239-264. 

Gurgel, Marina Gasparoto do Amaral. Raiva: emoção presente nos portadores de gastrite e esofagite. Psic,  São Paulo ,  v. 8, n. 2, p. 241-242, dez.  2007 .  acesso em  23  set.  2018.

Selye, Hans. Stress a Tensão da Vida. SP: Ibrasa, 1965

Maciocia, Giovanni. Os fundamentos da medicina chinesa. SP: Roca, 2015

Esse texto inclui também a revisão de contribuições e publicações do autor em:




Ideogramas

 Nù 激怒
exacerbation; enrage, infuriate, nettle, anger, thorn, pique, burn up, exacerbate

Cì Jī 刺激
stimulate, provoke, irritate, upset, motivate, motive
刺- - thorn
激- – Excited
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Fèn Nù 憤怒
Fèn anger /  indiginação
 Nu angry / zangado

angry, indignant, raging; umbrage, rage, pique, teen, paddy, anger, wrath, outrage, huff, fury, vehemence, vehemency, bile, indignation;
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Qīn Lüè 侵略

aggression, encroachment, foray, incursion, inroad, invasion; invade, intrude

Qīn invadir tomar
Lüè aos poucos