quinta-feira, 4 de novembro de 2021

A energia psíquica, em um ponto de vista quase chinês.

 

aspectos qualitativos e quantitativos da libido (energia)

Esse texto parte do princípio de que “tudo que a cultura possui se expressa através da língua; e esta é em si mesma um produto cultural”, sem resolver esse paradoxo analisamos a concepção de Chi – energia (?) enquanto elemento fundamental do sistema etnomédico chinês, que explica e permite intervenções sobre diversas condições psíquicas e neurofisiológicas. É um texto que faz parte de um conjunto de ensaios da tese ou proposição de que a acupuntura chinesa, engendra em si, uma teoria que explica o que compreendemos como o órgão cérebro, para os chineses “mar de medula”, e possibilita a intervenção em diversas patologias e manifestações clínicas do sistema nervoso tais como dor, depressão e outras doenças mentais, doenças psicossomáticas e neurológicas.

Observe-se, como ressalta Jung, que não se trata de uma comparação de conceitos, parafraseando Lovejoy, em “A concept of primitive philosophy” [um conceito de filosofia primitiva], citado no seu livro “A energia psíquica”: o que entendemos por “conceito” - uma idéia nascida naturalmente de nossa própria mentalidade – é para o “primitivo” um fenômeno psíquico, que é percebido em íntima ligação com o objeto, não podendo ser considerados ideias abstratas nem mesmo conceitos concretos simples, mas tão-somente representações. Não havendo, portanto, uma idéia abstrata entre os primitivos, nem mesmo conceitos concretos simples, mas tão-somente representações.

Segundo os citados autores na linguagem dita “primitiva” só se indica o fato da relação e da experiência que ela provoca, o que não quer dizer entretanto que nesse pensamento em estado “selvagem” não há uma elaboração abstrata, enquanto faculdade mental, e/ou um reflexão sobre suas próprias crenças. Para Levi-Strauss, o criador da antropologia estrutural, teoria onde o estudo da linguagem é uma fonte privilegiada para conhecimento de uma cultura, os textos escritos ou conjuntos de narrativas, elaborados por cada etnia, corresponderia a um "documento bruto” o que segundo ele equivale a uma etnografia, elaborada por representantes da própria etnia. No caso do sistema etnomédico chinês contamos principalmente com “o livro do Imperador Amarelo”, extraído e compilado das tradições orais na dinastia Han (200 a.C. a 200 de nossa era). 

Antes de nos determos na concepção chinesa sobre a energia Chi , sobretudo sobre sua forma de essência ancestral ou pré natal, relacionada ao meridiano do rim e ao cérebro, como veremos, vale destacar a, no mínimo intrigante, coincidência com o conceito de libido. Segundo o dicionário de psicanálise de Roudinesco: Libido é um termo latino (vontade, desejo), inicialmente utilizado pelos fundadores da sexologia para designar uma energia própria do instinto sexual, retomado por Sigmund Freud numa acepção inteiramente distinta, inclusive da a antiga terminologia filosófica, baseada no Eros (amor) platônico, da qual, ainda segundo Roudinesco,  foram conservados apenas um adjetivo — erógeno —, para designar uma zona do corpo ou uma atividade ligada à excitação sexual.

Coube a C.G. Jung a proposição do conceito de energia, embora também utilize o termo "libido", segundo ele apesar de não ser ideal, sob certos aspectos, mas por razões de justiça histórica à proposição de Freud, com seu ponto de partida que era o da sexualidade e "instinto" ("instinto do eu") e "energia psíquica", uma força instintiva que não deve ser confundida como um retorno a uma espécie concepção vitalista. Segundo Jung e também Freud, lidamos com fenômenos físicos, que podem ser considerados sob dois pontos de vista distintos, a saber: do ponto de vista mecanicista e do ponto de vista energético, a energia psíquica pode ser compreendida no seu aspecto quantitativo como qualitativo.

Para Jung, tal como explica na introdução do seu livro “A energia psíquica” a concepção mecanicista é meramente causal, e compreende o fenômeno como sendo o efeito resultante de uma causa, no sentido de que as substâncias imutáveis alteram as relações de umas para com as outras segundo determinadas leis fixas e a consideração energética é essencialmente de caráter finalista, e entende os fenômenos, partindo do efeito para a causa.

Na concepção freudiana, tal como enunciado no seu projeto de uma psicologia para neurologistas tais dimensões corresponderiam aos aspectos quantitativos (Q - imediatamente mensuráveis em termos de carga e descarga, elétrica segundo Pribran) e qualitativos correspondente nossa psique e transformações simbólicas da libido.

O esquema gráfico acima apresentado resume a concepção freudiana das relações entre a energia psíquica e os processos elétricos e neuroquímicos cerebrais inter-relacionados, como se fosse o que modernamente compreendemos como um sistema operacional (software) ou interface amigável para controle do processos elétricos da máquina (hardware). Freud escolheu a metáfora de “aparelho psíquico” enquanto analogia aos telescópios e microscópios, utilizados para examinar e compreender fenômenos de outra dimensão, micro ou macro cósmica, uma analogia, nesse caso, sobre a relação da psique com o sistema nervoso e demandas orgânico-corporais.

As questões sobre pseudociência e/ou a cientificidade da psicanálise, sem dúvida decorrem das limitações da metodologia experimental para aplicação nas suas principais hipóteses. Por questões, sobretudo éticas, é praticamente impossível estabelecer uma pesquisa com a metodologia de caso – controle e ou duplo cego, muito menos desenhos experimentais com variáveis dependentes e intervenientes.

Para Turato pode deve-se utilizar paralelamente, além dos recursos dos testes e estatística já consolidados pela psicologia clínica, a metodologia qualitativa das ciência humanas como recurso a confirmação independente dos achados clínicos, estimulando o debate substantivo sobre as evidências de notórios pontos de vista. Retomando, de certo modo a proposição do próprio Freud de recorrer à antropologia, à arte (ou estética) e à teoria literária e linguística como fundamentação. Um recurso também utilizado por Jacques Lacan ao aproximar a psicanálise da antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss e linguística de Ferdinand Saussure.

Antropologia médica

Interessante observarmos que a acupuntura e a medicina tradicional chinesa (MTC) no ocidente e também em alguns momentos (e setores) na própria China já sofreu a pecha de pseudociência. Tal como escrevi na wikipédia, uma das grandes disseminadoras da identificação dessa prática como uma forma de pseudociência, esta proposição provém do desenvolvimento da medicina baseada em evidências ao que se somou, no Brasil, o movimento jurídico-político conhecido como” ato médico”. Tal rotulação como dito na wikipédia, advém dos estudos intensificados a partir da década de 90 publicados pela Organização Cochrane e especialmente de estudos desenvolvidos pelo médico e pesquisador, especializado em combater as medicinas alternativas, Edzard Ernst, referendados por um grupo de pesquisadores ingleses, inclusive da tradicional (fundada em 1869) revista Nature.

Observe-se porém que em termos de história e metodologia científica a MTC e acupuntura seguiu um caminho inverso, incialmente descrita por religiosos (jesuítas) e viajantes e paulatinamente aproximando-se da metodologia clínica. Mais recentemente com recursos da antropologia, saúde pública e finalmente com diversas hipóteses e desenhos experimentais.

Para Laplantine, o autor de Antropologia da doença e saúde, a aplicação da antropologia à medicina, estuda a percepção e resposta de um grupo social à patologia; elabora e analisa modelos etiológicos e terapêuticos. Um modelo é: uma construção teórica, caráter operatório (hipótese) e também uma construção metacultural ou seja que visa fazer surgir e analisar as formas elementares da “concepção” da doença e da cura - sua estrutura seus invariantes tornando-o comparável a outros sistemas (Laplantine, 1991)

O trabalho de construir modelos operatórios, que não substituem a realidade empírica, ajuda a pensá-la e põe em evidência o que ela não diz. É curioso como alguns autores insistem na pesquisa da anatomia dos canais e pontos de acupuntura, ou medidas biofísicas do Chi, não que estas não sejam possíveis, mas ignorando completamente o fato de lidarmos com um modelo, metafórico, abstrato, um “documento etnográfico bruto” consolidado por uma tradição empírica ou milhares de anos de tentativas erro e acerto. 

Analisando os diversos sistemas terapêuticos com que convivemos no mundo atual, Laplantine identifica na Acupuntura um modelo etiológico do tipo Exógeno/Endógeno comparável à Endocrinologia, Neuropsiquiatria e um modelo terapêutico distinto da alopatia e homeopatia, classificado num grupo tipo Sedativo/ Excitativo comparável à medicina experimental / Fisiologia Médica (utilizou como exemplo a regulação de função no rim artificial) e proposições terapêuticas da imunologia, "Treinamento Autógeno" de Schultz e Bioenergética de W. Reich (Laplantine, 1991)

Segundo o médico e professor de acupuntura da Universidade de Granada (Es), José Luis Padilla Corral ao estudarmos a Medicina Tradicional Chinesa (MTC), a consideraremos, como ele, uma Medicina Tradicional Oriental (MTO), face a sua ampla difusão asiática com datação incerta (entre 5.000 e 2500 anos) e considerando que não é exatamente uma medicina. Na sua origem é uma tradição de costumes e conceitos referentes à relação do homem com seu universo. É praticamente um consenso que os conceitos médicos foram compilados pelo lendário “imperador Amarelo” Huang Di da dinastia Han (206 a.C. – 220 d.C) na obra hoje conhecida como Nei Jing (内經) - "O Livro do Imperador Amarelo". Essa obra é considerada um dos clássicos fundamentais da medicina tradicional chinesa. (Padilla Corral; Needham, Gwei-Djen; White, Ernst) 

Anotações sobre o Jīng, a essência

O ideograma Jing é um dos conceitos fundamentais para compreensão da acupuntura do ponto de vista energético ou finalístico, ou seja tenta-se entende-lo como causa de um fenômeno ou manifestações de demanda de tonificação ou sedação da energia Yin ou Yang. A tonificação e sedação, como se sabe, são procedimentos técnicos da acupuntura e/ou características de produtos farmacológicos, aplicados à reversão ou prevenção de condições clínicas ou doenças.

Utilizando-se os métodos de “diagnósticos” da MTC identificam-se síndromes de deficiência (xū ) e excesso, (shí ) de Chi (Qi) para as quais utiliza-se os recursos da tonificação e sedação para restaurar o estado de equilíbrio. Yin / Yang são os dois princípios básicos para classificar e intervir dos diversos fenômenos corporais, sejam fisiológicos ou patológicos na concepção ocidental. Observe-se que nessa perspectiva lidamos com um modelo (hidráulico) “quantitativo”. São comuns as metáforas que descrevem os canais ou meridianos como regatos, rios e mares. Contudo são mais complexos os “conceitos” e narrativas voltadas para descrever os aspectos “qualitativos” dessa energia    

Além do Nei Jing (内經) a “teoria” da acupuntura herdou do Taoísmo (Tao Te Ching, cap. 67) a concepção de três tesouros 三寶 (SānBǎo) que adaptados à prática “médica” são os nosso conhecidos Jing : a essência, a herança dos pais; o Qi : a vitalidade, energia, (parcimônia/ suficiência) e o Shen " espírito; alma, consciência (humildade/ contato com a divindade).  A natureza, o bem estar e a adaptação do indivíduo ou o processo saúde doença, depende da relação entre esses elementos.

Em algumas traduções a mente (psique) é descrita como JīngShén 精神. Observe-se como uma narrativa “médica” voltada para aplicações terapêuticas teve sua origem em um texto clássico chinês tradicionalmente creditado ao sábio Lao Tsé pelo menos 4 séculos antes da compilação do “Livro do Imperador Amarelo)

Na concepção “médico / terapêutica” da MTC o   Jing é o princípio essencial, a essência da vida. Constitui-se na substância pura fundamental, a base material com a qual é construída a estrutura física do corpo e montam suas diversas atividades funcionais. 

A Essência (Jīng) é formada por duas partes: a inicial (先天之 – Xian Tian Zhi Jing), pré-natal também chamada yuán chi (qì) e a posterior (后天之 – Hou Tian Zhi Jing), pós-natal ou zòng qì a essência congênita propriamente dita (energia cromossômica), também traduzida por essência adquirida.

O ideograma Jing está presente nas designações de esperma 精子Jīngzǐ ( Zi Filho) e 精液 Jīngyè - Sêmem) Yè Líquido). É como se fosse inevitável associar a energia psíquica ou bioenergia à libido e demandas de reprodução dos seres vivos.

Analisando o ideograma Tiān (t'ien / céu), princípio cósmico imaterial, quando associado ao Jīng – designa a energia ancestral que se conserva no meridiano dos rins ou campo de cinábrio inferior nas concepções da alquimia taoísta e/ou às regiões “anatômicas” dos campos de transformação da energia os 3 (san) jiao: shang Jiao (alto - suspender); zhong Jiao (meio) e  Xia Jiao (baixo inferior). Em muitos textos sobretudo posteriores ao Neijing, exclusivamente, Taoístas ou Budistas predomina a interpretação dessas joias ou tesouros como qualidades morais ou vitudes, tal como visto acima.    

O diagrama que aqui segue, mostra a relação ente o Shen (shén), o Jing e órgãos responsáveis pela assimilação e distribuição da energia Qi (Chi) do ar e alimentos, onde:  Tien (Tiān ) o princípio cósmico imaterial é equivalente ao Shen e ao Jing sem distinguir o inicial (先天之 – Xian Tian Zhi Jing) do posterior (后天之 – Hou Tian Zhi Jing) representando a energia ancestral que se conserva, como dito, no meridiano dos rins ou campo de cinábrio inferior nas concepções da alquimia taoísta. A relação entre esses dois princípios ou momentos é feita no que constitui o Chi - “a raiz do homem”.


O Chi (Qi) circula em um fluxo interno, transforma a essência do alento e a energia espiritual (shen). Atravessa os campos de transformação da energia dos alimentos e da respiração nos 3 (san) jiao conforme a Doutrina Médica Chinesa, segundo o Huangdi Neijing obedecendo as leis as leis do  Yin/Yang e dos 5 elementos.

Como referido a psique é à vezes descrita como JīngShén 精神. Numa concepção ampla a expressão Shen (às vezes traduzido por espírito e às vezes por sentimento) designa a manifestação exterior da vitalidade do corpo (a totalidade da psique) e em um sentido estrito representa a consciência que comanda o Coração e atividade mental.  Ao Jing corresponde o órgão, funções do rim que governa a medula e o cérebro (mar de medula). Na acupuntura e de certo modo no oriente, seria o que os indianos conhecem como "karma" e nós como determinação genética (de certo modo genoma). O Qi, na acupuntura assume muitas formas ou significados condizentes com a função que exerce em cada momento, circulando nos meridianos e/ou associado as funções nutritivas e defensivas: 正氣 (zhèng-qì / vital chi);  衛氣 (wèi-qì / chi defensivo); (jing qi / chi nutritivo)

O capítulo 1, do Su Wen, mostra claramente a importância do rim. (“Medula” ou “Emanação renal”) no crescimento, desenvolvimento, reprodução e envelhecimento e demarca cada período do ciclo vital em sete anos para mulher e oito para o homem. Observe-se que esta é um outro aspecto da energia compreendida na MTC como uma espécie de energia potencial e no ocidente como a programação genética (redução telomérica?) que explica o envelhecimento. Essa descrição pode ser resumida da seguinte forma:

- Infância (sete e oito anos); a emanação renal é abundante; a dentição muda e os cabelos se alongam; mudanças na pele e pelo; adolescência (14 e 16 anos); a emanação renal flui (ren mai) e floresce (chong mai); início da menstruação; início da emissão seminal; amadurecimento das funções sexuais e reprodutoras.

- 21 e 24 anos; a emanação renal está parada; desenvolvimento dos últimos dentes; no homem, os músculos são potentes e os ossos vigorosos;

- 28 e 32 anos; na mulher os músculos e ossos estão consolidados, os cabelos atingem seu maior tamanho e o corpo em pleno vigor; no homem os músculos estão salientes, as carnes viçosas e vigorosas.

35 e 40 anos: na mulher, o canal yang ming declina, o rosto começa a murchar e os cabelos a cair; no homem a respiração do rim enfraquece os cabelos os dentes começam a cair.

- 42 e 48 anos: na mulher, os três canais shou yang declinam, todo o rosto resseca-se e os cabelos começam a “esbranquiçar”; no homem, o yang na região superior está esgotado. O rosto se resseca e as têmporas ficam grisalhas.

- 49 e 56 anos: na mulher, o qi do Vaso Concepção declina, o qi do chong mai começa a enfraquecer e escassear, a energia sexual inicia a exaustão e a menstruação para, então seu corpo começa a envelhecer e ela não pode mais engravidar; no homem, a energia sexual começa a declinar, sêmen começa a escassear e os rins ficam fracos e todas as partes do corpo começam a envelhecer;

Aos 64 anos, no homem, os dentes e cabelos caem.

A energia psiquica

Quanto ao enigmático Shen

"O shen não pode ser escutado com o ouvido, o olho deve ser brilhante de percepção e o coração deve ser aberto e atento para que o espírito se revele subitamente através da própria consciência de cada um. Não se pode exprimir pela boca; só o coração sabe exprimir tudo quanto pode ser observado. Se presta muita atenção, pode-se ficar a saber subitamente, mas também pode-se perder de repente esse saber. Mas shen, o espírito, torna-se claro par o homem como se o vento tivesse varrido as nuvens. Por isso se fala dele como do espírito."  Nei Ching

Apesar da distinção entre mito e ciência feita pela antropologia estrutural, que identifica a ciência como construída a partir da observação e a mitologia pela introspeção (Levi Strauss - Pensamento Selvagem), nesse caso, não há discordância quanto a importância da observação. Na medicina tradicional chinesa descrita no Nei Ching, o livro do imperador amarelo, encontra-se esse interessante reforço à descrição de método para "observar-se" e conhecer a mente ou shèn o espírito que comanda o hsing / corpo ( xíng - forma) como pose ser constatado no parágrafo acima transcrito do Nei Ching, livro do imperador amarelo utilizado durante a dinastia Tang (唐朝), 618-906.

Alguns autores descrevem a mente como Xīn (sentimento) ou XīnShén 心神 (mente) talvez herdado ou contagiado pela concepção grega (e talvez universal) de ser o coração o órgão responsável pelos sentimentos e identificam o espírito Shén como o responsável pela percepção e consciência. Contudo a concepção de JīngShén 精神 nos remete a uma concepção mais ampla da totalidade da psique tal como compreendida por Sigmund Freud, integrando o “inconsciente” (id) à linguagem e às demandas instintivas das funções corporais. Em suas palavras...” o ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície.” (Freud, 1923). Por isso, é preciso apreendê-lo como uma projeção mental da superfície do corpo.

Nesse sistema etnomédico cujo referencial básico é o NeiChing ou livro do imperador amarelo o coração, fígado e rim têm maior importância; O Coração é o mestre dos cinco órgãos Zang e das cinco vísceras Fu; o fígado dirige a regulação dos sentimentos e os Rins encerram o Jing que é a base material e ancestral de tudo. As emoções e/ou os padrões de desarmonia também estão previstas, o que em linhas gerais pode ser descrito como:

- O Coração encerra o Shèn e governa a alegria

- O Pulmão encerra o Pò e governa a tristeza

- O Baço-pâncreas encerra o Yì e governa a reflexão

- O Fígado encerra o Hún e governa a raiva

- O Rim encerra o Zhì e governa o medo

Alguns autores como Zhang.e Chi, Martins Zafarini Neto enfatizam a possibilidade de interpretação das concepções da MTC à luz da psicanálise. O dois primeiros ressaltam que muito trabalho ainda precisa ser feito, na construção de um paradigma metodológico, para um diálogo mais amplo entre a MTC e a psicoterapia psicanalítica. Análoga possivelmente a uma espécie de “Acupuntura Falada” utilizando o poder da palavra como recurso de estimulação e inibição (Reinforcing and Reducing). A psicoterapia, segundo eles, em seu sentido restrito pode ser vista como a solidificação do qi defensivo wèi-qì , como uma categoria de apoio mais ampla, onde seu antagonismo e unificação coexistem em tensões dialéticas e dinâmicas próprias da psique.

Os autores Martins Zafarini Neto que também propõe uma aproximação /interpretação psicanalítica das MTC, como referido, destacam que no Nei Jing, a palavra shèn é utilizada com vários significados diferentes. Os dois principais que interessam ao tratamento das doenças mentais são: 1. Shen indicando a atividade do pensamento, consciência, autoidentidade, insight e memória, tal como Soulié de Morant, o interpreta; e 2. O Shèn que abrange o complexo de todos os cinco aspectos mentais e espirituais de um ser humano, isto é, a mente propriamente dita: o coração (shèn), a alma etérea (hun) o fígado, a alma corpórea (po) do pulmão, o intelecto (yi) do baço e a força de vontade (zhi) do rim.

É terrível que muitos detratores da acupuntura, supostamente baseados na comparação aos conceitos da anatomia e fisiologia experimental ocidental, continuem a tentar reduzir meridianos e energia aos componentes orgânicos (fígado, pulmão baço- pâncreas, rim etc.) e medidas físicas, classificando a MTC como uma pseudociência, (sabe Deus com quais intenções?) ignorando as contribuições da antropologia médica  que não só possibilitariam desenvolver um método de pesquisa eficiente, como  permitem uma compreensão mais exata dos procedimentos e intervenções da acupuntura e MTC enquanto uma pratica humana e biopsicossocial e, porque não dizer, espiritual?

Principais ideogramas incluídos no texto

Jing essência; Chi ou Qi / vitalidade, energia;   Shén espírito;

正氣 (zhèng-qì / vital chi);  衛氣 (wèi-qì / chi defensivo); (jing qi / chi nutritivo)

精子 (jīngzǐ /esperma);  Zi Filho;  精液 (Jīngyè - Sêmem) 陰道 (yindào /vagina)

精神 JīngShén / Psique;  xū / deficiência; shí / excesso.

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Ilustrações

Ideograma 陰道 (yīn dào) 陰 Yiīn: cloudy; overcast · dark · hidden; secret · negative · the Moon · shade; shadow · (philosophy) "female" principle; yin in yin-yang 道 Dào: Road, Way Propaganda lingerie -Lojas Renner Diagrama de espermatozoide / Sperm diagram https://pt.dreamstime.com/sperm-spermatozoide-vetor-de-fundo-image156375242

Diagrama do Aparelho Psíquico - Sigmund Freud (1923) sobre anotações do "Projeto de uma psicologia para neurologistas" Sigmund Freud (1950 [1895])

Diagrama da relação Jīng /Chi /Shén - Costa, Paulo Pedro P. R. O Mar de dentro Monografia especialização na Clínica Escola CLIMA orient. Jurecê J. Machado, 2001