segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Dian Kuang - 癫狂

As noções de desvio de comportamento e contato com a realidade, que definem a loucura (psicose), estão presentes em todos os povos. Entre os chineses os conceitos de sábio e "tonto" (愚人, yu ren, fool) podem ser identificados nos provérbios de Confúcio (Analectos) ou textos de Chuang Tse e Lao Tse, a exemplo de "O velho tonto que removeu montanhas" e o "Confúcio e o louco".

Na primeira fábula valoriza-se a persistência e vontade abnegada de um homem que parecia tolo por não desejar recompensas e, sobretudo por entregar-se a uma tarefa que parecia impossível (remover montanhas para encurtar uma estrada), por sinal acaba conseguindo com ajuda divina e de uma geração de seguidores. A segunda história, também recontada por Chuang Tsé cita um episódio vivido por Confúcio. Relativiza o comentário de um louco, que afirma que a sabedoria só faz sentido num mundo onde seja valorizada, de certo modo reafirmado a máxima de Lao Tsé que diz: os homens rudes riem do Tao como se fosse tolice e os homens sábios o reconhecem.

A MTC – Medicina Tradicional Chinesa, também aborda os Distúrbios Mentais como sofrimento e dano emocional. Atribuem, sobretudo uma agressão a função do Shen (coração) geralmente causada pelo fogo, flegma ou vento. Os textos modernos, como o livro dos Quatro Institutos produzido pelo governo revolucionário para divulgar a acupuntura, já utilizam, porém aproximações aos conceitos ocidentais de psicose, depressão, mania e histeria. Conceitos, diga-se de passagem, ainda sem consenso no âmbito da própria psiquiatria / psicologia deste nosso lado poente do hemisfério.

A "Histeria", no referido Livro dos quatro institutos, é descrita como um ataque repentino, sensação de sufocamento, afonia, convulsão, síncope, um típico distúrbio mental provocado pelo fogo, repressão de emoções, distingue-se da mania Kuang que é uma doença do vento com fígado e rins deficientes, ou seja que requer sedação - tonificação de seus respectivos meridianos.

Observe-se que a MTC assinala a relação da Mania, como da depressão (retraimento - desorientação/loucura) num quadro denominado Dian Kuang (癫狂), agitar-se de modo selvagem e permanecer calmo, Dian (癲). Esse termo corresponde à ideogramas associados a confusão, colisão, erro, embotamento e "divinação", ao que vem da divindade oráculo. Observe-se essa mesma expressão de relação com o sagrado estava também presente entre os gregos, igualmente identificada à Epilepsia – Dian Xian (癲癇) ou Yang Dian Feng (羊癫风) que poderia ser traduzida literalmente por "vento - cabra - louco". (Scott)

Na análise dos referidos caracteres feita por Maciocia o ideograma “dian” é composto por “zhen” corresponde ao ideal taoísta de homem gentil; “ye” ou alto da cabeça, através do qual a alma do homem amável sai e “bing” o caractere para doença representando em síntese a doença, onde “perde-se” a alma através da cabeça (perder a cabeça) e Kuang, incoerências de cachorro louco. (Maciocia).


Assim como na psiquiatria moderna (para alguns), supõe-se controlar as depressões, (melancolia) e manias ou mesmo a psicose maníaco depressiva apenas com psicofármacos, há quem acredite que somente o tratamento através com as agulhas da acupuntura, pode-se controlar o(s) processo(s) patológico(s) denominados por eles como “Dian Kuang” que também correspondente à concepção moderna de transtorno bipolar.

O antigo "Ling Shu", apresenta uma série de pontos à ser utilizados por acupuntura e moxabustão, recomenda também a sangria (dispersão) em casos de agitação. Nos comentários de Ming Wong à esse livro há também a recomendação ao entendimento do Dian Kuang no universo mental de outrora. Segundo ele a “loucura” é um termo vago que evoca o “vento” e a concepção chinesa não escapa a essa regra. O termo “feng” (vento - 风) significa loucura (envolvido pelo caractere “bing”. O doente está dominado pelo vento que suscita as perturbações mentais é preciso então extirpar essa energia perversa. (Ming Wong).

Naturalmente considero que são preciosos os critérios de diferenciação das diversas causas e promissores o tratamento através da acupuntura, fitoterapia e moxabustão da medicina chinesa, contudo como ocidental e profissional de saúde mental não é possível ignorar as descrições das alterações de comportamento da psicopatologia e pensar em formas de psicoterapia (cognitivas, comportamentais ou psicanalíticas) ou mesmo nas formas de aconselhamento (prescrição comportamental incluindo os familiares), quando se lê por exemplo no Nan Ching, o clássico das dificuldades:

...na “loucura” a pessoa raramente descansa ou não sente fome. Ela falará de si mesma como ocupando uma posição elevada e exemplar. Ela mostrará sua sabedoria especial e terá um comportamento arrogante e insolente. Ela rirá – e terá prazer em cantar e fazer música – sem razão, andará sem rumo sem descansar...

ou: na “epilepsia” (Dian) os pensamentos da pessoa são tristes. Ela se deita e olha diretamente para frente...

Um bom acupunturista deve não só dominar o processo de diagnóstico para distinguir as diferentes formas de intervenção com agulhas nos pontos apropriados ou demais técnicas na MTC, mas também, com já havíamos dito antes aqui nesse blog, buscar na meditação, estudo de sí e conhecimento filosofia oriental, a atitude reflexiva correta para um aconselhamento para o desenvolvimento progressivo de uma modificação de estilo de vida ou o aprendizado de hábitos saudáveis.

Lhes deixo essa reflexão do Tao Te Ching:











Um verdadeiro homem de bem (o Te / A virtude) não é “consciente” da sua bondade; por isso mesmo é bom (É isso que o Te é)

A virtude que se afasta da humildade (Ao Te humilde não falta o Te) não é a virtude (É o que o Te não é).

Um verdadeiro homem bom não faz nada para ser;
não obstante não deixa nada sem fazer.

Um homem tolo (os mais desprovidos de Te) está sempre fazendo, (sonhando/ planejando); não obstante muito fica sem fazer

Quando um verdadeiro homem amável faz algo,
não deixa nada sem fazer

Quando um homem das duras penas da lei faz algo, deixa muito sem fazer.

Quando um homem das aparências faz algo, exige que lhe respondam.

Portanto quando se perde do Tao, vem a virtude
Depois da perda da virtude, vem a bondade
Depois da perda da bondade, vem a justiça.
Depois da perda da justiça, vem o rito.

O rito é a aparência da fidelidade e da confiança (a casca da fé e lealdade) mas é também a fonte da desordem. (o começo da confusão).

A inteligência previdente (o poder preditivo da ciência) é a flor do Tao, mas é também o começo da estupidez (o princípio do desatino).

Assim o grande homem interessa-se pelo fundo e não pela superfície.

Pelo fruto, mais que pela flor.

Certamente prefere o interior, ao exterior.


XXXXXXXXX Bibliografia XXXXXXXXX

REPÚBLICA POPULAR DA CHINA - MINISTÉRIO DA SAÚDE/ QUATRO INSTITUTOS (Escola de Medicina Tradicional Chinesa de Beijing; Escola de Medicina Tradicional Chinesa de Shanghai; Escola de Medicina Tradicional Chinesa de Nanjig; Academia de Medicina Tradicional Chinesa). Fundamentos essenciais da acupuntura chinesa. SP, Ed. Ícone, 1995

MACIOCIA, GIOVANNI The Psyche in Chinese Medicine,Treatment of Emotional and Mental Disharmonies with Acupuncture and Chinese Herbs. UK, Hardbound, Elsevier, 2009

MERTON, THOMAS. Via de Chuang Tzu.RJ, Petrópolis: Vozes. 1978

SCOTT, JULIAN. Acupuntura no tratamento da criança. SP, Roca, 1997

XXXXXXX Clássicos XXXXXXXX

CONFÚCIO. Diálogos. Tradução Anne Cheng / Alcione Soares Ferreira. SP, Ibrasa, 1983.

LING-SHU, Base da acupuntura tradicional chinesa. Tradução e comentários de MING WONG. SP, Andrei, 1995

NAN CHING. O clássico das dificuldades. Tradução do chinês e notas de Paul U. Unschuld. SP Roca, 2003

LAO TSE (LAO TZU) Tao Te Ching. Tradução de António Melo. Lisboa, Estampa, 1977 / Tradução (pt) de Waldéa Barcellos a partir da tradução americana. SP, Martins Fontes, 2002 / Edição bilíngue, tradução de Maria Lucia Acaccio. SP, Isis, 2003

Desenhos de:

Vincent Van Gogh (1853-1890) - Sorrow, 1882

Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828), Frick Collection

Ver também:

Acupuntura e psicologia

Dian Kuang - Giovanni Maciocia

Acupuncture for schizophrenia (Cochrane Library)

...neste blog

- Plantas calmantes história e composição

- Cinnabaris 朱砂 (Zhusha)


Um comentário:

Paulo Pedro disse...

Psiquiatria & médicos de pés descalços, a propósito do artigo “...Psychiatry to Rural Physicians in China”

Desde a sua criação, em 1965, os "médicos descalços" melhoraram dramaticamente o cuidado rural, emergência, as taxas de imunização, controle de doenças infecciosas, infantis e as taxas de mortalidade materna; a expectativa de vida na China quase dobrou entre 1949 e 1993. Estes médicos foram oficialmente renomeados como "médicos rurais" em 1985, e sua formação foi padronizada no programa de 3 anos a faculdade de medicina. No entanto, (segundo autores do artigo em questão) a psiquiatria não fazia parte essencial de sua educação. Essa limitação é devido não só à escassez de recursos, mas também para a percepção de longa data que a psiquiatria é uma importação estrangeira, praticada apenas nos centros urbanos. Até a década de 1980, a psiquiatria foi politicamente denegrida como burguesa, e sua prática foi limitada a tratamento de doenças psicóticas e, como alguns críticos relatos descreveram, ao controle político-social.

Os autores lamentam o despreparo dos “médicos rurais” para enfrentar esses desafios onde a psiquiatria permanece um assunto relativamente estrangeiro, com os médicos rurais não oficialmente autorizados a prescrever medicamentos psicotrópicos e anunciam a recente incorporação da psiquiatria em sua formação de 3 anos recebida com grande interesse por eles.

O que achei estranho foi a não referência dos autores à medicina tradicional chinesa quanto ao que podemos chamar de cuidados etnopsiquiátricos a exemplo da síndrome Dian Kuang, inclusive com acupuntura e sua extensa farmacopéia com dezenas de plantas psicoativas. Sabemos também que há recomendações formais (elaboradas em manuais chineses tal como o “livro dos quatros institutos) para ansiedade, depressão e síndromes psiquiátricas e alguns quadros neurológicos.

Contudo pode-se entender a formação limitada dos médicos de pés descalços em acupuntura por seu treinamento centrados em cuidados primários das doenças da época relacionadas à extrema pobreza e ausência de cuidados como viviam os grandes segmentos da população que atenderam.

Partilho com os autores desse artigo a esperança de que, incorporando habilidades psiquiátricos, os médicos rurais chineses possam mudar cuidados de saúde mental rural tão radicalmente como os seus antecessores "médicos descalços" transformaram as condições de vida com práticas de atenção primária. Espero também que o referido menor número recém treinados que mostraram interesses nos cuidados às doenças mentais com a medicina tradicional chinesa (como refere o artigo) seja atendidos inclusive para o nosso aprendizado e continuidade da reforma da psiquiatria que pôde ser chamada burguesa e hospitalocêntrica.

Samuel F. Law, Pozi Liu, Brian D. Hodges, Wes Shera, Xuezhu Huang, Juveria Zaheer, Paul S. Links; Introducing Psychiatry to Rural Physicians in China: An Innovative Education Project. American Journal of Psychiatry. 2011 Dec;168(12):1249-1254.

http://ajp.psychiatryonline.org/data/Journals/AJP/4390/appi.ajp.2011.11040654.pdf

ver também: From “Barefoot Doctor” to “Village Doctor”
http://www.iupui.edu/~anthkb/e445/readings/white.pdf