Esse texto integra a proposição de analisar a medicina
tradicional chinesa e acupuntura enquanto um sistema etnomédico, tomando como
referência as suas concepções sobre o cérebro, mar de medula (suǐ hǎi) nos
textos chineses, descrevendo as características míticas e empíricas, que nos
permitem compreender e identificar a lógica de construção do raciocínio clínico
inerente a essa prática cultural, analisando simultaneamente as atuais
perspectivas de interpretação e integração da acupuntura à neurociência.
Entre os acupunturistas atribui-se a um diálogo entre o
Imperador Amarelo, Huangdi 黄帝, e seu ministro médico, Qi Bo - 岐伯,o primeiro texto escrito sobre a
medicina da antiga China que ficou conhecido como Huang Di Nei Jing (内經) "O Livro do Imperador Amarelo".
A tarefa de interpretar esse achado, de pelo menos 2000 anos (considerando
sua compilação na Dinastia Han), é essencial para compreensão da Medicina
Tradicional Chinesa e, é uma infantilidade lhe atribuir rótulos de
pseudociência (como assim fazem alguns editores da wikipédia e biomédicos
fanáticos) para não se apropriar dos recursos da antropologia médica na sua
interpretação.
A título de exemplo segue algumas anotações sobre os
conhecidos conceitos de “meridianos”, canais de acupuntura: 经络 Jīng Luò (Ching-Lo) e 穴 Hsüeh acupontos ou pontos de
acupuntura.
Lê-se no capítulo 56 do Nei Ching, o livro do Imperador Amarelo,
“Sobre as Camadas da Pele”. (Utilizamos a tradução/versão da Dinastia Tang por Bing
Wang).
Disse o Imperador Amarelo: as várias camadas da pele pertencem respectivamente aos doze canais; na
distribuição dos vasos, alguns são verticais e outros horizontais... as doenças
provenientes dos vários órgãos são diferentes, e podem ser distinguidas pelas
partes da pele que pertencem respectivamente a cada um deles;
Disse Qibo: Quando se
deseja determinar a qual canal pertence a parte da pele, deve-se basear nas
localizações que o canal atinge e por onde passa. As condições de todos os doze
canais são as mesmas.
Adiante (no capítulo 58 “Sobre os Acupontos” se lê:
... o Imperador Amarelo
dispensou as pessoas ao redor, levantou-se e se prosternou várias vezes dizendo
..."Seu discurso de hoje ilumina minha ignorância e alivia minha
perplexidade. Desejo conservar todas as suas palavras num cofre de ouro, e não as
perder de forma alguma; guardarei o cofre de ouro na biblioteca real e o nome
do arquivo é "As Posições dos Acupontos"
Disse Qibo: A diferença
do vaso do colateral imediato e do canal, é que o vaso do colateral imediato
pode despejar o sangue quando estiver abundante. Como os trezentos e sessenta e
cinco vasos, todos se conectam com os colaterais, a superabundância de sangue
pode penetrar nos colaterais e depois nos canais. A penetração não se limita
aos catorze canais... (os doze canais, mais os canais Ren e Du).
Observe-se a forma propria e a complexidade como são apresentados os
conceitos de acupontos e canais que atualmente tentamos (e não há como deixar
de tentar) interpretar como estruturas anatômicas e funcionais da pele e
sistema nervoso, para explicar os efeitos clínicos da acupuntura, moxabustão
potencializados pela fitoterapia e outros recursos da medicina tradicional chinesa.
Needham e Gwei-Djen
após discorrerem sobre a grafia e distinção dos diversos tipos de acupontos e
canais (principais, colaterais e extraordinários) abstratos e invisíveis, nos
explicam que os pontos dessa rede de canais, onde se inserem as finíssimas
agulhas, como sugere o nome Hsüeh (que significa um buraco ou uma minúscula
cavidade ou fenda), tem o sentido de meios de transmissão, 'por onde entra e
sai o shen chi (pneuma da vida), e como se lê no Ling Shu (uma parte do
clássico livro do Imperador Amarelo), “os pontos não estão nem na pele, nem na
carne, nem nos músculos nem nos ossos”.
Sem dúvidas lidamos com as narrativas simbólicas e metafóricas dos sistemas míticos. Contudo nos remetem a práticas voltadas para conservação ou recuperação da saúde. Sabe-se também que a Organização Mundial da Saúde em um
simpósio sobre acupuntura em 1979 apresentou uma lista com cerca de 40 doenças ou agravos que podem ser tratadas adequadamente
com essa abordagem. Tal relação abrangia principalmente os distúrbios neurológicos,
musculoesqueléticos associados à dor e distúrbios psicossomáticos. (Bannerman,
1979 )
Segundo Ching-Liang (2012), em artigo de revisão, apesar da eficácia da acupuntura como tratamento para doenças ou distúrbios do sistema nervoso ter sido questionada, principalmente porque possui um número limitado de ensaios clínicos controlados publicados, a acupuntura é comumente usada para amenizar dor e tratar doenças e distúrbios dele, como: acidente vascular cerebral, demência, doença de Parkinson, epilepsia, paralisia de Bell, síndrome do túnel do carpo e cefaleias tensionais.
O que se sabe, é que ao longo dos supostos meridianos,
encontram-se os pontos de acupuntura ou acupontos, que são estimulados por
agulhamento, pressão ou calor para resolver um problema clínico com relativo
sucesso em diferentes patologias.
Com a cautela dos que recomendam estudos e pesquisas
adicionais, Longhurst (2010) nos sinaliza que apesar dos diversos métodos usados
para identificar os meridianos e explicá-los anatomicamente - estruturas
tendino-musculares, primo-vasos (dutos de Bonghan *), regiões de temperatura
elevada e baixa resistência da pele - nenhum desses métodos atendeu aos critérios
de definição de um meridiano, entidade que, quando estimulada pela acupuntura,
pode resultar em melhora clínica e reforça a
“hipótese neural” afirmando que a
influência clínica da acupuntura é transmitida principalmente por meio da
estimulação de nervos sensoriais que fornecem sinais ao cérebro, que processa
essas informações e causa alterações clínicas associadas ao tratamento.
Para alguns autores como Cai (1992), acupuntura é baseada em
neuroanatomia e neurofisiologia. Em cada ponto de acupuntura, existem nervos
periféricos e terminais, e a acupuntura pode ser útil para uma maior
compreensão do sistema nervoso.
Por outro lado, observe-se que esta proposição apesar de
inquestionável do ponto de vista anatômico, é excessivamente reducionista, e
com assinala Dumitrescu (1996), entre outros, não é possível separar o mecanismo neural das respostas bioquímicas do sistema
imune, psicológico e emocional (psico-imune-neuro-endócrino).
Segundo revisão bibliográfica desse último citado autor (Dumitrescu,
1996), a camada córnea da pele constitui uma verdadeira membrana semipermeável
que por suas qualidades físicas participa, além das funções de proteção e
excreção, da atividade eletrodérmica, integrada aos mecanismos neuroendócrinos da
regulação da transpiração termogênica da adaptação ao meio ambiente e psicogênica,
ou seja a resposta galvânica da pele (alteração da resistência elétrica da pele
que ocorre com as emoções e situações específicas).
Integram ainda aos receptores de dor e calor distribuídos na
superfície epitelial, sinalizadores moleculares nos fluidos intersticiais, nas
relativamente bem conhecidas as sequencias de reações bioquímicas das respostas
pró e anti-inflamatórias (tétrade da inflamação): dor, calor, tumor (inchaço) e
rubor (vermelhidão e hiperemia), descritas por Aulus Cornelius Celsus (c. 25 BC
– c. 50 AD) e modificadas por Rudolf Virchow (1821-1902), que acrescentou a perda
de função da parte afetada. (Reid, 2011;
Bechara; Szabó, 2006)
Inclusive é extremamente plausível que existam correntes de difusão de compostos bioquímicos, eletrolíticas no fluido intracelular. Sabemos que um homem saudável médio tem
cerca de 60% de água em peso, e cerca de um terço dessa água encontram-se no
compartimento fora das células, como fluido intracelular, seja no plasma
sanguíneo (20%) e 80% desta no espaço extracelular e linfático. Os fluidos são
constantemente trocados entre esses compartimentos, movendo-se através das
paredes dos capilares e das membranas celulares. (Ver ilustração da Science Photo
Library)
Além dos mecanismos imunitários, celulares e bioquímicos, por
que não explorar os aspectos psicossociais do fenômeno, a exemplo da bem
definida “eficácia simbólica” descrita por Lévi-Strauss que inclusive nos
permite compreender melhor a dimensão psicossomática do efeito placebo.
A concepção de eficácia simbólica consiste, segundo esse auto
na propriedade indutora de uma transformação orgânica que possui uma
determinada estrutura, característica das categorias universais da cultura ou
da linguística em relação a outras estruturas formalmente homólogas dos
processos orgânicos, psiquismo inconsciente ou pensamento consciente, ou seja,
uma reorganização estrutural.
Desenvolveu esse conceito analisando um texto
mágico-religioso dos índios Cuna, do Panamá e propôs que a cura xamânica se
situa a meio do caminho entre nossa medicina orgânica e as terapêuticas
psicológicas semelhantes à psicanálise (Lévi-Strauss, 1975 a)
Em outro
texto desse mesmo período na crença destaca a importância das tradições e
consenso do grupo social na crença do doente nos poderes do curador ou eficácia
de sua arte / técnica, mas inverte magistralmente esse princípio ao demonstrar
que o xamã não adquire seu prestígio e poder porque curava os doentes e sim
curava os doentes porque adquiriu prestígio e poder. (Lévi-Strauss, 1975 b)
Observe-se também que o ponto de partida da referida análise estrutural, um texto mágico-religioso ou mítico.
Eliade “procurando” uma definição de mito que seja aceita tanto por eruditos e por não-especialistas, nos adverte que o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares.
Assim sendo, e analisando a medicina tradicional
chinesa e acupuntura enquanto uma prática com milhares de anos de existência,
que além da realidade orgânica do processo saúde doença nos remete aos
abstratos e metafóricos conceitos do Taoísmo, reafirmamos que: não há como não se apropriar dos recursos da antropologia médica para
sua interpretação.
É ainda Eliade que nos
esclarece que é o aprendizado do mito de sua origem, o que nos permite o domínio
de diversas realidades (cósmicas, o fogo, as colheitas, as serpentes, etc.). Por
extensão, a realidade das doenças, as impurezas, os perigos, a cura e a própria medicina, no
caso advinda das tradições orientais, mais especificamente chinesa, com seus
ideogramas e relações conceituais que nos possibilita as intervenções clínicas.
Interessante que no estudo de interpretação dos ideogramas de
meridianos e acupontos tenhamos recorrido ao conceito de sistema nervoso e psiquismo
ou energia psíquica, para um melhor compreensão e que os chineses no estudo e
entendimento de nervo 神经 shénjīng e neurônio 神经元 shénjīng yuán, recorreram aos ideogramas
de espírito e essência, o enigmático e mítico 神 Shén (espírito/consciência)
que se localiza no coração, a sede da ética que temos visto faltar na medicina contemporânea
governada pela ganância.
[ * ] Na
década de 1960, o cientista norte coreano, Kin Bong-Han relatou a existência de
estruturas tubulares dentro e fora de vasos sanguíneos e linfáticos, bem como
também sobre a superfície de órgãos internos e sob a pele. (Longhurst, 2010)
Outros ideogramas citados
经络 - Jīng Luò - Canais ou Meridianos / Ching-Lo 穴 Hsüeh – Acuponto
Huangdi 黄帝 / Qi Bo 岐伯 /Huang Di Nei Jing 内經 "O Livro do Imperador Amarelo".
Referências
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Tang – Edição bilíngue). São Paulo. Editora Ícone. 2001.
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VER TAMBÉM
- 2009: O Sistema
Etnomédico Chinês. Medicina tradicional X Ciência moderna
http://etnomedicina.blogspot.com/2009/09/o-sistema-etnomedico-chines.html
- 2011: O
movimento das cinco estações
http://etnomedicina.blogspot.com/2011/03/o-movimento-das-cinco-estacoes.html
- 2011: Specimen
Medicinae Sinicae
http://etnomedicina.blogspot.com/2011/12/specimen-medicinae-sinicae.html
- 2014: Cérebro
腦,o mar de dentro 髓海
http://etnomedicina.blogspot.com/2014/03/cerebro-o-mar-de-dentro.html
- 2017: A criação de Pan Gu
http://etnomedicina.blogspot.com/2017/08/a-criacao-de-pan-gu.html
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