Tende-se a interpretar a acupuntura
científica como acupuntura biomédica, como se as explicações desenvolvidas pelas
ciências sociais orientando a interpretação do conhecimento mítico – religioso,
não fossem uma explicação científica, ou que o entendimento dessa arte – técnica
não requeresse a compreensão de seu contexto cultural, sua dimensão psicossocial
e/ou espiritual. Ignorando-se também que o conhecimento oriental que, por si só,
foi suficiente, durante milhares de anos, para permitir seu pleno domínio e
utilização.
Por outro lado os orientais não desprezam os avanços e pesquisas biomédicas
associando suas explicações tradicionais ao conhecimento científico “ocidental”.
E, ainda paira no ar a pergunta: é possível à ciência ocidental, em seu
atual modelo materialista de descrição e pesquisa, compreender as tradições
orientais? ou, se vai ser necessário criar uma nova organização do conhecimento e
das práticas profissionais, inaugurando um novo paradigma?
A concepção de “paradigma” é essencial para compreender o movimento das
comunidades humanas em torno dessas explicações ditas científicas, sua hegemonia
ou descrédito, o reconhecimento enquanto ciência ou não. Paradigma é uma
realização científica com métodos e valores que são concebidos como modelo
ideal; uma referência inicial como base de modelo para estudos e pesquisas que
se sucedem.
Thomas Kuhn (1922- 1996), físico americano célebre por suas contribuições à
história e filosofia da ciência em especial do processo que leva à evolução do
desenvolvimento científico. Em seu livro a “Estrutura das Revoluções
Científicas” apresenta a concepção de que "um paradigma, é aquilo que os membros
de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste
em homens que partilham um paradigma", e define "o estudo dos paradigmas como “o que prepara basicamente o estudante para ser membro da comunidade científica na qual atuará mais tarde".
É um desafio para o praticante ocidental conciliar o amplo espectro de
disciplinas requerido para entendimento desse novo campo do saber que se
inaugurou com o nome de “acupuntura” no ocidente. Inaugurou-se, mesmo para os
que não têm essa consciência, articulando a neuropsicologia do efeito placebo e
das relações estímulo - resposta à antropologia médica ou antropologia da
saúde (o ramo dessa ciência que tem como objeto, por excelência, a interpretação de outras culturas) com a clínica médica fundamentada na neurofisiologia e bioquímica celular dos efeitos da inserção de agulhas em pontos específicos do corpo humano e animal.
Por não possuir um modelo definido de explicação teórica e prática
profissional, um novo paradigma há de ser construído e não é uma legislação ou
decreto que vai definir sua forma. Esse texto é um rápido passeio por duas das
principais explicações biomédicas, deixando de lado (por enquanto) outras teorias e um
grande número de textos referentes à experiência milenar chinesa além dos resultados
das décadas dessa prática no ocidente. O objetivo é mostrar que esse
conhecimento ainda não “dá conta”, não tem poder explicativo, para as amplas
possibilidades de efeitos da acupuntura, reconhecendo, porém o seu valor e
complexidade.
A teoria das comportas e neuromodulação da dor
A teoria das comportas (gate control) proposta por Ronald Melzack and Patrick
Wall (Science, 1965), aplicada à acupuntura, talvez seja a teoria que mais contribuiu
para aceitação sua aceitação no ocidente, embora limitada à explicação de seu
efeito analgésico / “anestésico”.
Observou-se que ao nível do segmento medular, uma rede de neurônios intercalares,
conectados por fibras "C" amielínicas, formam um sistema relé. Articulam-se com os
neurônios motores das respostas reflexas locais de evitação e do aferimento de
posição proveniente dos termo e mecano - receptores estáticos das articulações ou tendões e de localização cutânea gerando, em paralelo a sensação dolorosa, a informação que também situa a dor no esquema corporal.
Segundo a teoria que descreve tais conexões a distinção e articulação dos
estímulos que são conduzidos por diferentes fibras nervosas, (tipo A delta -
mielinizadas de diâmetro fino ("A δ" ) e tipo C - amielínicas), se dá numa região do corno sensitivo (dorsal) de cada segmento da medula (a região que
também é conhecida por substancia gelatinosa de Rolando - SG) com a liberação de
metencefalina pelas células pedunculadas (interneurônios inibitórios)
A interrupção das vias sensitivas que foi então nomeada porta de controle (gate control) se dá pelo bloqueio da via mielinizada pelos neurônios de axônio curto e a ativação do sistema de neurônios internunciais, da medula sensitivo dorsal pelas fibras grossas do tato (mecanoreceptores), que exercem uma ação bloqueadora na transmissão dos estímulos de dor.
Teoria das comportas
Nesse caso por outra via ascendente, o
trato espinotalâmico, o estímulo da fibra "A δ" é conduzido ao Córtex cerebral, onde são interpretadas, ou "percebidas" como sensações de peso, distensão, calor
ou parestesia que ocorrem durante o estímulo por acupuntura.
A analgesia profunda obtida por acupuntura mantém a consciência e motricidade,
ocorre aproximadamente entre 20 e 30 minutos após a interseção das agulhas,
mantém-se sensação de tato e pressão, alteram-se a discriminação vinda dos
termoreceptores. É comum sua prática associada à sedativos em função de
conservação de reflexos vegetativos e sensibilidade dolorosa do osso e
periósteo. O resultado segundo diversos autores varia num limite amplo entre
45-75 % para os que a consideram perfeita e entre 25-45 %, parcial. (Dumitrescu,
1996)
Micro lesões em nível celular
Entender, em nível molecular a ação da acupuntura descrita
nas teorias consensuais do “gate control” (comportas) e produção de endorfinas
(bloqueadas por ação de fármacos antagônicos durante a aplicação da agulha)
requer implicitamente a compreensão dos mecanismos celulares e histológicos do
local da aplicação.
A caracterização do ponto de acupuntura já foi relativamente estudada com poucos
resultados consensuais prestigiados, entretanto descrições e estudos da dimensão
da perfuração e “dano” celular de uma agulha de 0,1 a 0,5 mm em estruturas
celulares da ordem de 1 a 10 µ (micras) podem ser compreendidos a partir de
certo domínio de conceitos básicos da biologia celular, especialmente os
mecanismos de inflamação e reparo após lesão celular.
Quando um bisturi fere a pele ativa diretamente as fibras da dor rápida (azul) e indiretamente a da dor lenta (vermelho). Nesse último caso, as células lesadas os mastócitos do sangue e os próprios terminais nervosos secretam substâncias que geram uma relação inflamatória local. Lent. (p.231)
A compreensão dos referidos mecanismos, inclusive é essencial para o entendimento do ponto de vista ocidental do efeito da acupuntura sobre o sistema imunológico, tanto nas doenças alérgicas como infecciosas.
As células são estruturas microscópicas só perceptíveis com auxílio de instrumentos ópticos entre 7,5 µ micra (hemácia) e 200 µ (óvulo) no organismo humano. Um hepatócito, por exemplo, é uma célula cúbica 30 µ (1 µ mícron equivale a 1 milésimo de milímetro, 0,001 mm - 1 x 103 cm).
Ao nível dos pontos de estimulação a introdução de uma agulha de aproximadamente 0,3 mm espessura atinge profundidades que variam entre 1,0 a 2,5 mm (0,5 a 1 polegada) em pontos específicos. A pele humana humana apresenta duas camadas: a epiderme e a derme, sua espessura varia de 1,5 a 4 mm.
Selecionamos essa imagem e conceitos essenciais à essa forma de interpretação:
Derme e epiderme formam uma estrutura média próxima de 20 camadas de células. (1 célula - 600 µ / 0,1 mm).
A pele
A epiderme com suas 5 subcamadas (estrato córneo; estrato lúcido; granuloso; espinhoso e estrato germinativo ou de células basais) situa-se sobre a derme região vascularizada, com vasos linfáticos composta de fibroblastos que produzem colágeno e fibras elásticas (elastinas).
A derme é a camada profunda onde se localizam as raízes dos pêlos (folículos pilosos), o canal das glândulas sudoríparas e estas na camada subcutânea, que fica abaixo da derme, as glândulas sebáceas e as terminações nervosas ou receptores táteis (Corpúsculos de Vater Paccini; de Meissner; Discos de Merkel) os Corpúsculo de Krause e de Ruffini receptores de frio e calor e os nociceptores ou terminações nervosas livres (fibras de meio (1/2) milésimo de milímetro (0,0005 mm)) com diferentes concentrações ao longo dos 25.000 cm2 de superfície desse tegumento.
Ainda no âmbito do estudo da ação da
acupuntura em nível celular temos que incluir a resposta dos elementos do tecido
sanguíneo e conjuntivo acionados por estimulação específica, ou seja:
neutrófilos, eosinófilos, linfócitos, basófilos e plaquetas no sangue e
fibroblastos no tecido conjuntivo e mastócitos em ambos os tecidos. Diversas
pesquisas evidenciam que os resultados da ação da acupuntura são visíveis no
hemograma, como veremos.
Acupuntura molecular
Uma vez compreendida a intervenção do estímulo da acupuntura em nível celular, o
que é a rigor é uma tarefa que se estenderia à micro-anatomia ou histologia de
cada ponto de acupuntura, como dito, pode-se deter no estudo dos mecanismos
bioquímicos de inflamação e reparo, os únicos consensualmente aceitos como efeitos da
intervenção com agulhas. Embora indissociáveis ao estudo do aspecto celular o
efeito da inserção de agulhas, aplicação eletricidade e calor (aquecimento da
pele a 54º por 5 seg. – Robins) dá início a uma pseudo - inflamação aguda ou
síndrome de adaptação local cujo efeito no sistema nervoso e imunológico ainda é
pouco compreendido.
A inflamação é a reação do tecido vivo e vascularizado à uma agressão ambiental
(Robins) distingue-se usualmente a fase crônica da aguda que dura cerca de
minutos, horas, no máximo um ou dois dias e é a principal mecanismo que aciona a
resposta humoral iniciada pelo estímulo da acupuntura considerado como uma
agressão mecânica à integridade celular.
Alguns autores distinguem 3 fases mais ou menos intrincadas: a primária, dita
precoce inespecífica ou vascular; uma segunda fase de infiltração celular com
afluxo de macrófagos e leucócitos, e a fase tardia ou de reparação, altamente
específica. (Rodrigues, 1988)
Após uma lesão celular um conjunto de mediadores químicos da inflamação é
acionado, iniciando-se o processo pró - inflamatório e antiinflamatório que
caracterizam o mecanismo do stress fisiológico nas reações locais (SAL –
Síndrome de Adaptação Local) e gerais (SAG – Síndrome de Adaptação Global) do
organismo na concepção de Stress de Hans Selye (1907-1982).
Na resposta imediata transitória distingue-se a liberação as substâncias pré
formadas: as aminas vasoativas Histamina e Serotonina, as primeiras a serem
liberadas; a Bradicinina, composto vasoativo, responsável pela contração da
musculatura lisa e sensação dolorosa e as substâncias (recém) sintetizadas a
partir do ácido araquidônico (prostaglandina, tomboxanas e leucotrienos) que
mantém a resposta inflamatória, juntamente com a ação das enzimas lisossomiais
resultantes de destruição celular e de produtos de neutrófilos, que são os
primeiros leucócitos a serem acionados para dar início ao conhecido padrão de
reação (Calor, Rubor, Tumor / Edema e Dor.) que caracteriza a inflamação.
A resposta imediata transitória inicia-se após a agressão celular/tecidual e tem
seu apogeu entre 5 a 10 minutos, diminuindo entre 15-30 minutos, é despertada
pela histamina e pela maioria dos mediadores químicos. A histamina é o mediador
mais importante do início da resposta inflamatória aguda, em parte por já estar
formada e estocada nos grânulos de mastócitos e basófilos (cerca de 5 µg por 1
milhão de células). A serotonina é encontrada além do Sistema Nervoso nas
plaquetas e assim como a bradicinina é uma resposta plasmática relacionada à
agressão vascular. Na cascata de coagulação a bradicinina é uma resposta
plasmática acionada pelo fator XII de coagulação (fator de Hageman) rapidamente
inativada por cinidases, em cerca de 10 minutos. (Siqueira Jr. ; Dantas)
Alguns autores referem-se à tempos distintos nessa seqüência de reações estudas
a partir da ruptura de integridade celular conhecida como efeito “lasca” ou
“farpa” extensível à introdução de agulhas esterilizados. Segundo Birch e Felt
(2002) o primeiro estágio ou de vasoconstrição / formação de coágulo dura
aproximadamente uns 20 minutos; o segundo, caracterizado por vasodilatação,
migração de leucócitos, eliminação de produtos residuais chega a durar várias
horas (entre 2 a 3 h) seguido de 3 estágio (com motilidade dos vasos) que pode
dura 1 hora ou mais. Observaram também que a introdução da agulha em uma
determinada região produz alterações longe do local de inserção possivelmente em
tecidos ou áreas específicas possivelmente previsíveis, mas que ainda necessitam
maiores investigações.
As aminas biogênicas – histamina e serotonina também possuem ação sobre
neuropeptídios e respostas locais dos terminais nervosos somático sensorial, em
especial as taquicininas, (substância P, neurocinina A, neuropeptídio K)
provavelmente das fibras amielínicas do tipo C. Mediadores de respostas
específicas do sistema nervoso autônomo também tem sido pesquisados sendo
recente a identificação do neuropeptídeo Y – NPY. Entre as respostas específicas
situam-se também a inflamação neurogênica. (Siqueira Jr. ; Dantas)
Ainda sobre neurotransmissores cabe referir aqui a presenças das encefalinas,
que segundo White (in: Ernest, White, 2001) estão presente nas lâminas I e IV do
corno posterior e na substancia cinzenta periaquedutal; a betaendorfina da
substancia cinzenta periaquedutal e núcleo arqueado do hipotálamo, e a dinorfina
que é encontrada em toda medula espinhal. (Ernest, White o.c. p.95)
Os leucócitos são atraídos para área da lesão, inicialmente os neutrófilos pela
calicreina e ativador plasminogênico no processo de formação da bradicinina,
seguidos dos monócitos e dos linfócitos para dar continuidade ao processo
inflamatório a partir de suas concentrações (definidas por quimioatraentes) e
demandas específicas dos tecidos. Os agentes quimiotáticos incluem produtos
bacterianos, fragmentos do complemento, metabólitos do ácido araquidônico e
quimiocínas.
No processo inflamatório as ações das citocinas (quimiocínas, monocinas,
linfocinas, interleucinas) produzidas por linfócitos, o óxido nítrico derivado
do endotélio e a ativação do sistema complemento (antígeno-anticorpo) dependem
dos resultados da inflamação aguda. Podendo evoluir para resolução completa com
regeneração, cura por reposição de tecido conjuntivo ou fibrose, formação de
abscesso ou evolução para inflamação crônica (semanas ou meses) caracterizado a
resposta altamente específica do organismo à suas agressões.
Dumitrescu (1996) em seu livro “Acupuntura científica moderna” apresenta um
série de pesquisas sobre alterações bioquímicas e sistemas da acupuntura
relacionadas à ação antiinflamatória / humoral a saber: ativação
anti-histamínica; aumento da heparina /heparinase no sangue (anticoagulante);
aumento dos 17-cetosteróides, 17-hidroxicorticosteróides e da aldosterona
urinária; aumento das catecolaminas, 17-hidroxicorticosteróides, 17
cetosteróides e da corticosterona plasmática livre com uma manutenção das taxas
mais elevadas após a interrupção das sessões de acupuntura. (o.c. p. 236) Dentre
as alterações em nível celular refere-se à leucocitose aumento das proteínas
totais, gamaglobulinas e experimentos específicos sobre proliferação de
mastócitos. (o.c. p. 238)
Segundo pesquisas reunidas por Lundemberg (2001) a acupuntura tanto pode ser
usada para estimular mecanismos imunológicos como para suprimir respostas
específicas como, por exemplo, leucocitose e atividade fagocitária ou redução do
número de eosinófilos e níveis de IgE, embora ainda não se tenha nenhuma prova
rigorosa do mecanismo como o sistema imunológico reponde à estimulação de
agulhas de diferentes formas ou sob diferentes condições além dos efeitos que
podem ser atribuídos à liberação geral de ACTH / cortisol e mecanismos reflexos
segmentares. (Lundeberg, o.c. p.131)
Explicações necessárias e suficientes
As explicações baseadas na modulação da dor, resposta humoral da inflamação e
dano aos tecidos, têm mecanismos biológicos são consensualmente aceitos e por isso
mesmo apontados como responsáveis pelo reconhecimento científico da acupuntura,
contudo as teorias das comportas (gate control) e modulação da dor, como também
designadas, possuem fraco poder preditivo na prática clínica. Ou seja fora o
controle da dor não explicam a atuação em diversos quadros clínicos, mesmo os
incluídos na relação da OMS aonde predominam doenças psicossomáticas.
Os mecanismos biológicos que podem ser sinteticamente definidos como
neuromodulação, na concepção de Moritz ainda não são capazes de explicar a
recuperação motora (regeneração do tecido nervoso?), a normalização das funções
orgânicas, a modulação da imunidade, das funções endócrinas, autonômicas mentais
e ativação de processos regenerativos, apesar de se somarem evidências que tais
resultados ocorrem.
Como foi dito anteriormente um conjunto de explicações necessárias e
suficientes, ainda está para ser construído.
Observe-se que serão as experiências empíricas dos diversos profissionais que
atualmente já trabalham com acupuntura (fisioterapia, psicologia, odontologia,
enfermagem, pediatria, neurologia, psiquiatria, obstetrícia etc.) associando
suas respectivas práticas à sua avaliação de resultados terapêuticos um dos
fundamentos de sua compreensão do ponto de vista ocidental
Naturalmente aliando tais explicações ao domínio das explicações da medicina
tradicional chinesa enquanto prática empírica milenar e teórica intermediada
pela antropologia num esforço de interpretação biomédica ocidental já esboçada.
Estes, a meu ver, são os elementos da construção de uma teoria científica da
acupuntura e em função dessa complexidade melhor uma graduação universitária
específica com especializações nas diversas áreas que já se formaram e são
inevitáveis na atual conjuntura das práticas de saúde atuais.
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