domingo, 16 de abril de 2023

Meridianos & Mitos

Esse texto integra a proposição de analisar a medicina tradicional chinesa e acupuntura enquanto um sistema etnomédico, tomando como referência as suas concepções sobre o cérebro, mar de medula (suǐ hǎi) nos textos chineses, descrevendo as características míticas e empíricas, que nos permitem compreender e identificar a lógica de construção do raciocínio clínico inerente a essa prática cultural, analisando simultaneamente as atuais perspectivas de interpretação e integração da acupuntura à neurociência.



Entre os acupunturistas atribui-se a um diálogo entre o Imperador Amarelo, Huangdi 黄帝, e seu ministro médico, Qi Bo - 岐伯,o primeiro texto escrito sobre a medicina da antiga China que ficou conhecido como Huang Di Nei Jing (内經) "O Livro do Imperador Amarelo".

A tarefa de interpretar esse achado, de pelo menos 2000 anos (considerando sua compilação na Dinastia Han), é essencial para compreensão da Medicina Tradicional Chinesa e, é uma infantilidade lhe atribuir rótulos de pseudociência (como assim fazem alguns editores da wikipédia e biomédicos fanáticos) para não se apropriar dos recursos da antropologia médica na sua interpretação.

A título de exemplo segue algumas anotações sobre os conhecidos conceitos de “meridianos”, canais de acupuntura: 经络 Jīng Luò (Ching-Lo) e Hsüeh acupontos ou pontos de acupuntura.

Lê-se no capítulo 56 do Nei Ching, o livro do Imperador Amarelo, “Sobre as Camadas da Pele”. (Utilizamos a tradução/versão da Dinastia Tang por Bing Wang).

Disse o Imperador Amarelo: as várias camadas da pele pertencem respectivamente aos doze canais; na distribuição dos vasos, alguns são verticais e outros horizontais... as doenças provenientes dos vários órgãos são diferentes, e podem ser distinguidas pelas partes da pele que pertencem respectivamente a cada um deles;

Disse Qibo: Quando se deseja determinar a qual canal pertence a parte da pele, deve-se basear nas localizações que o canal atinge e por onde passa. As condições de todos os doze canais são as mesmas.

Adiante (no capítulo 58 “Sobre os Acupontos” se lê:

... o Imperador Amarelo dispensou as pessoas ao redor, levantou-se e se prosternou várias vezes dizendo ..."Seu discurso de hoje ilumina minha ignorância e alivia minha perplexidade. Desejo conservar todas as suas palavras num cofre de ouro, e não as perder de forma alguma; guardarei o cofre de ouro na biblioteca real e o nome do arquivo é "As Posições dos Acupontos"

Disse Qibo: A diferença do vaso do colateral imediato e do canal, é que o vaso do colateral imediato pode despejar o sangue quando estiver abundante. Como os trezentos e sessenta e cinco vasos, todos se conectam com os colaterais, a superabundância de sangue pode penetrar nos colaterais e depois nos canais. A penetração não se limita aos catorze canais... (os doze canais, mais os canais Ren e Du).

Observe-se a forma propria e a complexidade como são apresentados os conceitos de acupontos e canais que atualmente tentamos (e não há como deixar de tentar) interpretar como estruturas anatômicas e funcionais da pele e sistema nervoso, para explicar os efeitos clínicos da acupuntura, moxabustão potencializados pela fitoterapia e outros recursos da medicina tradicional chinesa.

Needham e  Gwei-Djen após discorrerem sobre a grafia e distinção dos diversos tipos de acupontos e canais (principais, colaterais e extraordinários) abstratos e invisíveis, nos explicam que os pontos dessa rede de canais, onde se inserem as finíssimas agulhas, como sugere o nome Hsüeh (que significa um buraco ou uma minúscula cavidade ou fenda), tem o sentido de meios de transmissão, 'por onde entra e sai o shen chi (pneuma da vida), e como se lê no Ling Shu (uma parte do clássico livro do Imperador Amarelo), “os pontos não estão nem na pele, nem na carne, nem nos músculos nem nos ossos”.

Sem dúvidas lidamos com as narrativas simbólicas e metafóricas dos sistemas míticos. Contudo nos remetem a práticas voltadas para conservação ou recuperação da saúde. Sabe-se também que a Organização Mundial da Saúde em um simpósio sobre acupuntura em 1979 apresentou uma lista com cerca  de 40 doenças ou agravos que podem ser tratadas adequadamente com essa abordagem. Tal relação abrangia principalmente os distúrbios neurológicos, musculoesqueléticos associados à dor e distúrbios psicossomáticos. (Bannerman, 1979 )

Segundo Ching-Liang (2012), em artigo de revisão, apesar da eficácia da acupuntura como tratamento para doenças ou distúrbios do sistema nervoso ter sido questionada, principalmente porque possui um número limitado de ensaios clínicos controlados publicados, a acupuntura é comumente usada para amenizar dor e tratar doenças e distúrbios dele, como: acidente vascular cerebral, demência, doença de Parkinson, epilepsia, paralisia de Bell, síndrome do túnel do carpo e cefaleias tensionais.  

O que se sabe, é que ao longo dos supostos meridianos, encontram-se os pontos de acupuntura ou acupontos, que são estimulados por agulhamento, pressão ou calor para resolver um problema clínico com relativo sucesso em diferentes patologias.

Com a cautela dos que recomendam estudos e pesquisas adicionais, Longhurst (2010) nos sinaliza que apesar dos diversos métodos usados para identificar os meridianos e explicá-los anatomicamente - estruturas tendino-musculares, primo-vasos (dutos de Bonghan *), regiões de temperatura elevada e baixa resistência da pele - nenhum desses métodos atendeu aos critérios de definição de um meridiano, entidade que, quando estimulada pela acupuntura, pode resultar em melhora clínica e reforça a  “hipótese neural” afirmando que a influência clínica da acupuntura é transmitida principalmente por meio da estimulação de nervos sensoriais que fornecem sinais ao cérebro, que processa essas informações e causa alterações clínicas associadas ao tratamento.

Para alguns autores como Cai (1992), acupuntura é baseada em neuroanatomia e neurofisiologia. Em cada ponto de acupuntura, existem nervos periféricos e terminais, e a acupuntura pode ser útil para uma maior compreensão do sistema nervoso.

Por outro lado, observe-se que esta proposição apesar de inquestionável do ponto de vista anatômico, é excessivamente reducionista, e com assinala Dumitrescu (1996), entre outros, não é possível separar o mecanismo neural das respostas bioquímicas do sistema imune, psicológico e emocional (psico-imune-neuro-endócrino).

Segundo revisão bibliográfica desse último citado autor (Dumitrescu, 1996), a camada córnea da pele constitui uma verdadeira membrana semipermeável que por suas qualidades físicas participa, além das funções de proteção e excreção, da atividade eletrodérmica, integrada aos mecanismos neuroendócrinos da regulação da transpiração termogênica da adaptação ao meio ambiente e psicogênica, ou seja a resposta galvânica da pele (alteração da resistência elétrica da pele que ocorre com as emoções e situações específicas).  

Integram ainda aos receptores de dor e calor distribuídos na superfície epitelial, sinalizadores moleculares nos fluidos intersticiais, nas relativamente bem conhecidas as sequencias de reações bioquímicas das respostas pró e anti-inflamatórias (tétrade da inflamação): dor, calor, tumor (inchaço) e rubor (vermelhidão e hiperemia), descritas por Aulus Cornelius Celsus (c. 25 BC – c. 50 AD) e modificadas por Rudolf Virchow (1821-1902), que acrescentou a perda de função da parte afetada.  (Reid, 2011; Bechara; Szabó, 2006)

Inclusive é extremamente plausível que existam correntes de difusão de compostos bioquímicos, eletrolíticas no fluido intracelular. Sabemos que um homem saudável médio tem cerca de 60% de água em peso, e cerca de um terço dessa água encontram-se no compartimento fora das células, como fluido intracelular, seja no plasma sanguíneo (20%) e 80% desta no espaço extracelular e linfático. Os fluidos são constantemente trocados entre esses compartimentos, movendo-se através das paredes dos capilares e das membranas celulares. (Ver ilustração da Science Photo Library)

Além dos mecanismos imunitários, celulares e bioquímicos, por que não explorar os aspectos psicossociais do fenômeno, a exemplo da bem definida “eficácia simbólica” descrita por Lévi-Strauss que inclusive nos permite compreender melhor a dimensão psicossomática do efeito placebo.

A concepção de eficácia simbólica consiste, segundo esse auto na propriedade indutora de uma transformação orgânica que possui uma determinada estrutura, característica das categorias universais da cultura ou da linguística em relação a outras estruturas formalmente homólogas dos processos orgânicos, psiquismo inconsciente ou pensamento consciente, ou seja, uma reorganização estrutural.

Desenvolveu esse conceito analisando um texto mágico-religioso dos índios Cuna, do Panamá e propôs que a cura xamânica se situa a meio do caminho entre nossa medicina orgânica e as terapêuticas psicológicas semelhantes à psicanálise (Lévi-Strauss, 1975 a)   

Em outro texto desse mesmo período na crença destaca a importância das tradições e consenso do grupo social na crença do doente nos poderes do curador ou eficácia de sua arte / técnica, mas inverte magistralmente esse princípio ao demonstrar que o xamã não adquire seu prestígio e poder porque curava os doentes e sim curava os doentes porque adquiriu prestígio e poder. (Lévi-Strauss, 1975 b)    

Observe-se também que o ponto de partida da referida análise estrutural, um texto mágico-religioso ou mítico. 

Eliade “procurando” uma definição de mito que seja aceita tanto por eruditos e por não-especialistas, nos adverte que o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares.  

Assim sendo, e analisando a medicina tradicional chinesa e acupuntura enquanto uma prática com milhares de anos de existência, que além da realidade orgânica do processo saúde doença nos remete aos abstratos e metafóricos conceitos do Taoísmo, reafirmamos que: não há como não se apropriar dos recursos da antropologia médica para sua interpretação.

É ainda Eliade que nos esclarece que é o aprendizado do mito de sua origem, o que nos permite o domínio de diversas realidades (cósmicas, o fogo, as colheitas, as serpentes, etc.). Por extensão, a realidade das doenças, as impurezas, os perigos, a cura e a própria medicina, no caso advinda das tradições orientais, mais especificamente chinesa, com seus ideogramas e relações conceituais que nos possibilita as intervenções clínicas.    

Interessante que no estudo de interpretação dos ideogramas de meridianos e acupontos tenhamos recorrido ao conceito de sistema nervoso e psiquismo ou energia psíquica, para um melhor compreensão e que os chineses no estudo e entendimento de nervo shénjīng e neurônio 经元 shénjīng yuán, recorreram aos ideogramas de espírito e essência, o enigmático e mítico Shén (espírito/consciência) que se localiza no coração, a sede da ética que temos visto faltar na medicina contemporânea governada pela ganância.  

Nota

[ * ] Na década de 1960, o cientista norte coreano, Kin Bong-Han relatou a existência de estruturas tubulares dentro e fora de vasos sanguíneos e linfáticos, bem como também sobre a superfície de órgãos internos e sob a pele. (Longhurst, 2010)

Outros ideogramas citados

经络 - Jīng Luò - Canais ou Meridianos / Ching-Lo Hsüeh – Acuponto

Huangdi 黄帝 / Qi Bo 岐伯 /Huang Di Nei Jing 内經 "O Livro do Imperador Amarelo".

Referências

BANNERMAN, R. H. Acupuncture: the WHO view. In: WHO, World Health, Acupuncture. Geneva Switzerland: World Health Organization, December, 1979

BECHARA, G. H.; SZABÓ, M. P. J. Processo Inflamatório. 1. Alterações Vasculares e Mediação Química. 2006. Disponível em: < http://www.fcav.unesp.br/Home/departamentos/patologia/GERVASIOHENRIQUEBECHARA/inflam_aspectosvasculares2006.pdf>. Acesso em: 15/04/2023

CAI, Wuying (1992). Acupuncture and the Nervous System. The American Journal of Chinese Medicine, 20(3n4), 331–337. doi:10.1142/s0192415x92000369

CHING-LIANG Hsieh (2012). Acupuncture as treatment for nervous system diseases. 2(2), –. doi:10.1016/j.biomed.2012.04.004 https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S2211802012000289   Acesso em 15/04/2023

DUMITRESCU, Ioan Florin. Acupuntura científica moderna. SP, Andrei, 1996

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. SP: Perspectiva, 1972

LÉVI-STRAUSS, Claude. A eficácia simbólica. in: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975 (a)

LÉVI-STRAUSS, Claude. O feiticeiro e sua magia. in: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975 (b)

LONGHURST, John C. (2010). Defining Meridians: A Modern Basis of Understanding. Journal of Acupuncture and Meridian Studies Volume 3, Issue 2, June 2010, Pages 67-74; doi:10.1016/s2005-2901(10)60014-3

MOLLOY Cordelia. Body fluid compartments, (illustration C049/3379). Science Photo Library. https://www.sciencephoto.com/media/1120279/view/body-fluid-compartments-illustration Acesso 15/04/2023

NEEDHAM, Joseph; GWEI-DJEN, Lu; SIVIN. Celestial lancets: a history and rationale of acupuncture and moxa. Cambridge University Press, 2000 ISBN 0521632625

REID, R. et.al. (2011). Pathology Illustrated. Seventh edition. Churchill Livingstone Elsevier Ltd: 2011: p.32

WANG, Bing. Princípios de Medicina Interna do Imperador Amarelo (Dinastia Tang – Edição bilíngue). São Paulo. Editora Ícone. 2001.

 

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VER TAMBÉM

- 2009: O Sistema Etnomédico Chinês. Medicina tradicional X Ciência moderna
http://etnomedicina.blogspot.com/2009/09/o-sistema-etnomedico-chines.html

- 2011: O movimento das cinco estações
http://etnomedicina.blogspot.com/2011/03/o-movimento-das-cinco-estacoes.html

- 2011: Specimen Medicinae Sinicae
http://etnomedicina.blogspot.com/2011/12/specimen-medicinae-sinicae.html

- 2014: Cérebro ,o mar de dentro 髓海 
http://etnomedicina.blogspot.com/2014/03/cerebro-o-mar-de-dentro.html

- 2017: A criação de Pan Gu
http://etnomedicina.blogspot.com/2017/08/a-criacao-de-pan-gu.html

 

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